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quarta-feira, 5 de novembro de 2008

PERSPECTIVAS PARA UMA HISTORIOGRAFIA CULTURAL

Não é nada fácil falar sobre cultura e sobre história cultural, já que tudo hoje parece impregnado e medido pela cultura. A "cultura" transformou-se na categoria chave para a compreensão do mundo contemporâneo e, como reconheceu recentemente Jameson, até mesmo os níveis políticos e ideológicos devem ser desemaranhados de seu modo primário de representação que é cultural. Peter Burke, no texto da sua palestra, começa exatamente por reconhecer esta dificuldade - dificuldade que temos até em definir os territórios, já que as tradicionais fronteiras de pesquisa foram quebradas - e, prefere pela menção a dois autores "clássicos" da história cultural: Burckhardt e Huizinga.
Elias Thomé Saliba

Das várias maneiras de aquilatar o reconhecimento destes "clássicos" da história da cultura, a mais sintomática é verificar o número de vezes que foram e ainda são citados, todas às vezes na qual se trata desse tema. Não por coincidência, portanto, que, da mesma maneira que Peter Burke, E.H. Gombrich, na sua famosa conferencia de 1967, sobre História cultural, também se refira reiteradamente às obras, senão clássicas, pelo menos fundadoras, de Burckhardt e Huiziga. [Gombrich, 1969] Também não é coincidência que Gombrich também partilhe do mesmo dilema - talvez o principal - apontando para uma história cultural: "como resistir à fragmentação sem voltar ao pressuposto do Zeitgeist ou, da unidade cultural"?
Gombrich descreve este afastamento dos "clássicos" como um abandono da metafísica hegeliana e analisa a construção de uma (nova) historiografia cultural por sobre os escombros dos alicerces do sistema hegeliano. É a busca difusa desta unidade cultural, que ele aponta nas obras de Burckhardt e na do seu seguidor, Huizinga - que constitui a tarefa teórica de uma história da cultura para estes "clássicos". Esta tarefa, observa Gombrich, guarda, estreitas semelhanças com o edifício hegelianos da história cultural, e como o seu corolário, o método de exegese: "tendo postulado a unidade de todas as manifestações de uma civilização", argumenta Gombrich o método consiste em tomar diversos elementos da cultura, por exemplo, a arquitetura grega e a filosofia grega, e perguntar como poderá demonstrar-se que são exemplos do mesmo espírito. No fim de uma tal interpretação de haver sempre triunfante QED euclidiano, pois foi essa mesma tarefa que Hegel atribui à história: descobrir em cada factual o principal geral que lhe subjaz." [Gombrich, 1969: 21-33]
A observação de Gombrich sobre os traços hegelianos nos dois autores considerados como "clássicos" da historiografia cultural, vem bem a propósito de identificar, por trás dos vários entendimentos de uma história cultural, as diferentes concepções teóricas e diferentes caminhos metodológicos. Podemos notar que é difícil discordar dos quatros aspectos, assimilados por Burke, que inviabilizam uma aceitação contemporânea de uma história cultural nos moldes "clássicos". Ninguém defende hoje, pelo menos de forma programática, uma história da cultura "suspensa no ar", ou seja, carente de um exame mais sólido dos entrecruzamentos de uma história social, embora também seja fácil verificar as dificuldades de praticar uma história cultural que resista às tentações de "dissolver" o social. O mesmo pode ser dito com relação ao pressuposto da existência de um "espírito da época", incluindo, como bem aponta Burke, a ingênua noção de uma homogeneidade cultural. A própria noção de Cultura, para além da "grande narrativa da civilização ocidental", alargou-se em direção de outras dimensões e outros territórios. Assim, só podemos concordar com tais aspectos, assimilados na palestra de Burke, com única ressalva de que, para nós, eles se constituem mais em sintomas do que propriamente a essência das questões presentes na proposta de uma renovada historiografia cultural.
O problema é que por trás destes sintomas está toda uma gama das mais concepções teóricas - e a mudança de enfoque da história cultural tem mais a ver com uma alteração do papel da teoria no trabalho historiográfico. Gombrich tem razão quando argumenta, no texto já citado, que a historiografia cultural procurou encontrar seus caminhos através do esforço em abandonar os traços metafísicos, presentes tanto no difuso hegelianismo e nos seus desdobramentos, quanto nas correntes marxistas posteriores. O mais forte traço, por assim dizer, "metafísico" estava expresso numa ênfase no dever ser (mais no que no ser) e em explicações, implícita e explicitamente teleológicas. Quase toda a produção historiográfica dos anos oitenta (falamos sempre em termos de tendências) foi, no fundo, uma crítica velada àquela concepção prescritiva, abstrata e, ao mesmo tempo normativa de Cultura, fundada em modelos. O conceito gramsciano de hegemonia - muito citado, pouco lido e ainda menos entendido na pratica historiográfica - de larga circulação na historiografia britânica do pós-guerra serviu de mote inspirador para muitos dos trabalhos mais importantes nesta área. Os historiadores da Cultura tratavam de emancipar-se de modelos que remetiam o social a outra coisa e não a si mesmo. A "cultura", com todo o seu arsenal simbólico e imaginário, passou a ser relacionada a uma totalidade histórica antes desprezada: como se formaram os mecanismos de dominação e de exploração entre os homens? Como estes mecanismos (ao nível do cultural) se confrontam, se difundiram e se perpetuam? Assim, os símbolos, as imagens, as mentalidades, as praticas culturais, foram consideradas como lugares de exercícios de poder, de dominação e de conflitos sociais.
Porque este retorno ao cultural era também sintoma de um cansaço com uma história saturada de estruturas, hierarquias, modos-de-produção, sistemas, subsistemas, modelos - enfim, da história como um processo sem sujeito. O operário fora das fábricas, a mulher pobre, os vadios, as prostitutas, as feiticeiras, o escravo urbano, os marginais, moleiros perseguidos, bizarros guerreiros medievais, camponeses encalacrados em processos, escritores e artistas obscuros - foram se incorporando como temas conspícuos da historiografia. Compreender como os homens do passado se compreendiam, como eles se constituíam a si mesmos, à sua totalidade e a sua própria história - tornou-se uma nova missão para os historiadores. O passado passou a ser visto como um feixe de práticas discursivas, como uma sucessão de versões que se sobrepunham umas às outras numa regressão quase infinita. Os objetos, antes inscritos e recortados de uma história social, fragmentaram-se e dissolveram-se num difuso território da indeterminação.
A própria dimensão cultural ganhou novos contornos: modo de expressão e de auto-elaboração de grupos sociais no correr da história, tornou-se, portanto, também de conflitos, de lutas, de possíveis não-equivalentes. A cultura passou a ganhar, nos livros de história, os contornos daquilo a que Sartre apenas vislumbrou, chamando de dimensão "prático-inerte" da vida humana, salientando, numa alusão famosa que, afinal, na história, "não se toma a Bastilha todos os dias". Assim, a história cultural, para além dos obstáculos, apontados por Burke a partir dos "clássicos", e dos quais ela tenta se livrar, pode ser geralmente redefinida como um estudo dos processos e práticas das quais se constrói um sentido e se forjam os significantes do mundo social.
Embora concordamos com o diagnóstico de Burke a respeito da história cultural, é necessário, portanto, acrescentar este diagnóstico, todas estas alterações do próprio estatuto teórico na compreensão da cultura e da história. Com a perda da confiança nas certezas da quantificação, com o abandono dos recortes ditos "clássicos", sejam geográficos ou temáticos; com o questionamento das noções ("mentalidades", "cultura popular", etc.) ou das categorias ("classes sociais, classificações socioprofissionais, etc.); com a desconfiança nos modelos interpretativos (estruturalistas, marxistas, demográficos, etc.), a História Cultural obriga-se hoje, cada vez mais, a buscar novos caminhos.(Chartier, 1995)".
Também consideramos problemático descrever (?), como se faz de passagem, a abordagem da atual história cultural como "antropologia histórica ou, história antropológica". E isto pelo simples fato de que a noção de cultura e, por conseguinte, suas respectivas derivações teóricas entre antropólogos, envolve uma diversidade de abordagens tão (ou mais) polêmica quanto entre os historiadores. Ou a noção de cultura, em Clifford Geertz e Lévi-Strauss, seria a mesma e partiria dos mesmos pressupostos teóricos?
Embora a corrente de maior prestígio entre os historiadores tenha sido a antropologia simbólica, associada à obra de autores como Mary Douglas, Victor Turner e Clifford Geertz, é necessário reconhecer estas diferenças na abordagem da própria categoria "cultura" - e isto, para além das simples alternativas entre globalidade e fragmentação. Os métodos etnográficos dessa vertente da antropologia cultural, fundados na interpretação dos elementos culturais, essencialmente como textos ou, como atos simbólicos, embalaram o trabalho de muitos historiadores. A extensão da noção de texto para todos os objetos e temas da história cultural levou Geertz, um dos antropólogos mais notáveis dessa corrente a falar numa "Nova Filosofia", que ele definiu como estudo da significação fixada e separada dos processos sociais que a engendraram". Os historiadores, salvo raríssimas exceções, partiram para transformar tudo em texto e encontrar no passado "estruturas de significado", "gabaritos simbólicos", sistemas simbólicos e outras variações. Comportamento não-escrito de resistência à mudança? Discurso político? Festas e folguedos comunitários? Crenças, tradições orais ou rituais? Tudo poderia ser visto pela grade da textualização, tudo poderia ser tratado como texto, ou seja, como um conjunto potencialmente significativo. Pretensamente munidos de um método, chamado de descrição densa, os historiadores acabam por passar ao largo da singularidade dos objetos, produzindo generalidades... A descrição densa de Geertz é uma miscelânea, define um antropólogo, é aquilo que todo antropólogo, munido de boas intenções tentou fazer depois das críticas do objetivismo, do colonialismo e do etnocentrismo. [Gomes Jr., 1992]
Afinal, todos desejamos que a antropologia histórica seja bem-vinda para a historiografia cultural, mas, com a condição do historiador fazer funcionar, como disse Thompson, aquela vigilante casa de cambio teórico, na alfândega epistemológica, ou seja, qualquer diálogo interdisciplinar só poderá ser legitimo se incorporar uma discussão de teoria e de métodos.
Peter Burke exemplifica os novos dilemas da historia cultural, tecendo comentários em torno das obras de Simon Schama e de Nicolau Sevcenko. A caracterização do livro de Sevcenko como "livro de fragmentos" parece-nos ligeira e, em todo caso, procede de uma leitura equivocada. Em primeiro lugar, Orfeu extático não é um livro sobre a Semana de Arte Moderna de 1922, mas um variadíssimo painel dos impasses da modernidade cultural brasileira, tendo como centro a urbanização acelerada de São Paulo, nos anos vinte. Nunca será demais lembrar - pois o silencio da critica a este respeito é assustador - que Orfeu Extático é ainda uma releitura original do modernismo paulista, através do seu ambíguo num cenário de desenraizamento e fragmentação que converge, rapidamente, para repotencializar atitudes nacionalistas e mitos de mobilização coletiva. Não custa lembrar que a semana de 1922 é caracterizada, no mesmo livro como um tour de force de propaganda em favor da arte moderna em São Paulo e apenas mais um evento entre a extensa programação de festas cívicas que aconteciam na cidade, inclusive com patrocínio e o incentivo do governador do Estado. Em todos os capítulos há uma sutil linha interpretativa, mostrando como a urbanização acelerada e a velocidade tecnológica conjugavam-se com símbolos regressivos e arcaicos, próprios de uma geração que não tinha mais um passado - e partia numa busca sôfrega pelas raízes tradicionais paulistas de bandeirantes, "caipiras estilizados", forjando todo um imaginários de mitos, novos ou tradicionais. O livro, como um todo, constitui uma desmistificação da aura de ilusão presente no gesto pretensamente inovador dos nossos modernistas, mostrando-se que, por trás da forma, do vocabulário e do repertório de imagens, subsistia a mesma tônica idealista, nativista, nacionalista e militante. A ritualização das fantasias coletivas, expressa o mito do orfismo, impregnada toda a reconstrução desse cenário e - só não vê que não quer - possibilita, em extensão, repensar criticamente os mitos populistas na história cultural brasileira. [Saliba, 1993]
Encontro cultural, circularidade entre cultura erudita e popular e processo de cotidianização - apontados por Burke como índices de um ponto de vista novo para seu estudo sobre o renascimento, constituem-se, na verdade em desafios heurísticos para o historiador da cultura. Historiador que, hoje, mais do que nunca, e ao contrario dos tempos nos quais a procura do Zeitgeist é que dava o tom, encontra talvez a sua tarefa mais complexa na busca empírica dessas pluralidades culturais. Porque, em História cultural, ou talvez mesmo no conhecimento histórico tout cour, mais difícil do que fornecer a receita, é fazer o bolo sem desandar a massa... O historiador deve esforçar-se por superar, heuristicamente, duas das dificuldades mais comuns aos estudos culturais: sair das prisões interpretativas dos "contextos" econômicos ou sociais ou sócio-culturais que a tudo explicam (ou simplificam) e afinar seu diapasão (e sua sensibilidade) para aquilo que Michel De Certeau chamou de "artes de fazer", ou seja, para uma lógica específica de algumas manifestações "populares" - lógica marcada pela contradição e pela ambigüidade - características, não raro, impermeáveis à lógica racional. Afinal, a partir de quais perspectivas falam os historiadores da cultura popular? - perguntavam De Certeau e D. Júlia em conhecido artigo - argumentando "que as noções que tais historiadores se utilizam, para construir a sua rede de inventário, foram todas retiradas das categorias do saber ou, mais amplamente, da cultura "culta". [De Certeau, e Júlia, 1989]
Em suma, a história cultural transformou-se na principal fronteira dos estudos históricos na atualidade, exatamente, porque não há, a rigor, entradas privilegiadas nem exigências previas para o estudo das culturas. Exigências prévias que faziam parte das concepções totalizantes, de extensão hegeliana ou não, mas, sempre fortemente marcadas por categorias teleológicas que, afinal, viam a história como exemplo de evolução "progressiva" e de conjunto de toda humanidade. Neste caso, nem é preciso ser pós moderno, para continuar acreditando que o pensamento racionalista conduza, necessariamente, ao progresso humano...
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Referências Bibliográficas:
Gombrich, Ernst. In search on Cultural History. Oxford: Oxford University Press, 1969.
Saliba, Elias Th. Cultura Modernista em São Paulo Estudos Históricos, 11: 128-132, 1993
Chartier, Roger, Faire de l’Histoire après 20 annes Le Monde des livres, 24.02.95, p.4.
Gomes Jr., Guilherme Simões. A hermenêutica cultural de Clifford Geertz .Margem, 1. 37-46, 1992.
De Certeau, Michel & Júlia, Dominique. A beleza do morto: o conceito de cultura popular In: Revel, J. A Invenção da Sociedade. Lisboa: Difel, 1989, p. 63-64.
Falcon, Francisco J. Calazans. A História Cultural. In: Rascunhos de História. Rio de Janeiro: Puc, 1991.
http://www.uem.br/~dhi/Rev_a02.htm

sábado, 11 de outubro de 2008

HISTÓRIA DA CULTURA E HISTÓRIA SOCIAL

HISTÓRIA CULTURAL E HISTÓRIA SOCIAL

Silvia Hunold Lara

No Brasil, a história cultural tornou-se, há algum tempo, prática corrente entre os historiadores. Quase todos os programas de pós-graduação possuem alguma linha de pesquisa com a palavra cultura em seu título e vêm produzindo teses nesta área em quantidades crescentes. O problema é que, neste "boom" historiográfico, vozes simultâneas falam de cultura querendo dizer coisas bem diferentes, referindo-se a pesquisas de natureza bastante diversa. Por isso mesmo, as discussões sobre os sentidos e limites deste campo de reflexão histórica são, não somente bem-vindos, mas necessários.

Abordando o tema com habilidade e experiência, Peter Burke contrapõe a "história cultural clássica" à "nova história cultural", destacando quatro pontos críticos: a natureza dos vínculos entre cultura e sociedade; a existência de unidade ou diversidade culturais; a variação nos conceitos de cultura; e os problemas de uma noção de cultura estreita demais (equivalente às belas-artes). Diante deles, propõe uma história cultural que esteja atenta para "o encontro cultural, a circularidade e o processo de cotidianização".
Um rápido exame da produção mais recente da história cultural - no Brasil e no exterior - logo revela a grande variedade de significados atribuídos à palavra "cultura". Não se trata, porém, apenas de uma questão de terminologia, mas de modos diversos de conceber a atividade histórica, de formular problemas e abordar a documentação - ligados a tradições historiográficas distintas. Assim, a concepção de que há um universo mental comum entre "César e o último soldado de suas legiões", como afirmou Le Goff (1976), já pressupõe um tipo de vínculo entre sociedade e cultura, uma indagação sobre o que transcende as diferenças, e leva a um determinado tratamento das fontes. Contrapondo-se a esta concepção e criticando "a insistência nos elementos inertes, obscuros [e] inconscientes" da história das mentalidades, Ginzburg defendeu que "uma análise de classes" (centrada, portanto, nas diferenças e conflitos) era "sempre melhor que uma interclassista" (Ginzburg, 1987, p. 32)
A oposição, entretanto, não é tão simples. Enfatizando a diferença e o estranhamento, Darnton (1986) procurou decodificar um "universo mental estranho". Não tentava fazer emergir uma "cultura camponesa latente" em documentos produzidos pela Inquisição, como no caso dos primeiros trabalhos de Ginzburg, mas ter acesso a significados culturais existentes, por exemplo, em um massacre de gatos praticado por alguns artesãos no século XVIII. Pressupondo haver um idioma cultural comum - caso contrário, os patrões não se sentiriam atingidos pela "brincadeira" feita por seus empregados - procurou ver também variações. Trabalhou com diferentes interpretações patronais (do dono da gráfica ou de sua mulher) e várias possibilidades de entendimento do ritual do massacre, conforme procurasse situá-lo em tradições corporativas, festivas etc. Aqui, ao invés de dicotomias culturais e relações de circularidade e troca entre universos distintos, há diversos conflitos simultâneos e entrecruzados que se expressam através daquele (para nós) estranho massacre de gatos.
A existência ou não de consensos culturais, a multiplicidade e as relações entre significações diversas e em conflito: estes são aspectos que mantêm vínculos diretos com os debates mais amplos da história social, repondo, em novos termos, questões clássicas nesta área. Uma boa maneira de retomar alguns dos temas propostos por Peter Burke é verificar seus imbricamentos e mostrar como, do ponto de vista das implicações e problemas envolvidos pelo conhecimento histórico, não há separação entre história social e história cultural.
Creio ser esta uma questão central para os que se dedicam ao estudo da história cultural. Como tratar, ao mesmo tempo, da unidade e da diversidade culturais? Dicotomias ou polaridades que opõem a elite ao popular, o urbano ao rural, letrados e iletrados, apesar de muito criticadas, ainda continuam a ser freqüentemente utilizadas. As categorias tradicionalmente utilizadas pela história social também não parecem ser muito adequadas à análise cultural. De um lado, pode-se concordar com Hobsbawm (1987) sobre comportamentos e valores que distinguem a "cultura operária" na Inglaterra de meados do século XIX e pensar, portanto, em culturas "de classe", capazes de separar e diferenciar as classes entre si. Por outro, não se pode esquecer as considerações de Gutman (1976) sobre as dissensões internas à "classe operária" norte-americana, em função da das experiências anteriores e da diversidade étnica.
Hobsbawm estava mais interessado nas questões da consciência de classe; Gutman, por sua vez, procurou examinar as tensões entre diversos grupos de homens e mulheres recém-chegados à América e à vida das fábricas. Ênfases diferentes, questões e pesquisas diversas. O problema de Gutman não está mais nas relações entre "cultura" e "sociedade", mas sim na apreensão da diversidade e da unidade cultural no interior dos vários grupos sociais.
Do ponto de vista das relações entre um grupo e a sociedade, creio que um artigo de Thompson (1974) é bastante sugestivo. Trabalhando com a oposição entre gentry e plebe, mais que reconstruir o "universo mental dos trabalhadores ingleses", ele mostrou como, partilhando valores comuns, os trabalhadores pobres foram se sentindo e sendo diferenciados da e pela gentry; numa época de aparente consenso, o conflito entre os dois grupos fez parte da própria diferenciação social entre os dois pólos e criou canais específicos de compreensão e expressão destas tensões.
Evidentemente, como diriam Thompson, Hill e tantos outros, homens e mulheres experimentam identidades e diferenças ao longo de suas vidas. Compartilham interesses ou lutam contra inimigos comuns, pensam sobre isso e consideram suas estratégias a partir de certos valores, herdados ou construídos. A experiência - uma das noções mais caras a Thompson - não pertence à história social ou à história cultural, mas interliga necessariamente as duas abordagens. Neste sentido, há "sensibilidades" ou "mentalidades" diversas - mas é preciso não esquecer que ao teatro da gentry se opõe o contra-teatro da plebe: mais que um idioma, talvez o que tenhamos aqui seja uma gramática cultural comum. Para além da questão da terminologia há a idéia de que pessoas diferentes podem atribuir significados diversos a práticas culturais comuns, ou expressar sentidos contrários no interior de uma mesma "linguagem" cultural.
A idéia de um idioma cultural comum parece ser mais adequada a situações de aparente consenso social, mas também pode ser explorada em circunstâncias históricas em que as dificuldades de comunicação parecem ter sido enormes - como no caso de culturas radicalmente diferentes que entram em contato pela primeira vez. A análise de situações de choque cultural, em que pessoas de mundos estranhos passam a estar em contato, são importantes para o estudo das aproximações e afastamentos entre grupos sociais antagônicos e desiguais no interior de uma mesma sociedade. Noções como sincretismo, por exemplo, tornam-se extremamente precárias nestes contextos. Creio que um dos grandes problemas que atravessam a história cultural e social hoje em dia seja justamente o de lidar com estas relações contraditórias de consenso e dissenso, unidade e diversidade, união e conflito entre grupos sociais e no interior dos grupos de uma sociedade.
Pelo menos é o que mais tem me interessado, e o que estou tentando abordar através de minha própria pesquisa. Até pouco tempo atrás, estudei a escravidão no Brasil da segunda metade do século XVIII seguindo questões formuladas no interior da história social "clássica". Estava preocupada com "os escravos", com sua visão da escravidão, com suas possibilidades de alterar suas condições de vida e trabalho. Diferenças de gênero e origem, por exemplo, não fizeram parte de minhas preocupações. Quando muito estavam presentes em tabelas que apresentavam porcentagens de homens e mulheres, casados e solteiros, crioulos e africanos etc. Hoje, tenho procurado verificar como estas diferenças aparecem na vida de escravas, forras e livres que andavam pelas ruas de Salvador e Rio de Janeiro, no mesmo período.
Como as diferenças entre aquelas mulheres (brancas, pardas e negras; crioulas ou africanas; livres, forras e escravas) eram percebidas por elas mesmas e pelos outros (homens e mulheres, na sua diversidade social e cultural) que com elas se relacionavam? Não se trata de um estudo centralizado nas questões de gênero: o objeto principal estudado são os trajes femininos. A escolha é meramente estratégica, pois permite discutir como gênero, raça e etnia se cruzam nos dois mais importantes núcleos urbanos da colônia portuguesa na América. Faço isso trabalhando com os diversos significados atribuídos às roupas das várias mulheres que circulavam, em diferentes ocasiões, pelas duas cidades. De certo modo, a questão dos idiomas culturais se coloca aqui, num contexto bastante interessante: em Salvador e Rio de Janeiro do final do século XVIII havia pessoas culturalmente diferentes (vindas de Portugal, de outras nações européias ou da África) e socialmente desiguais (escravos e seus senhores, forros, artesãos, etc). É instigante verificar como, apesar da grande presença da escravidão dos africanos e de seus descendentes, as categorias culturais e sociais não podem ser mecanicamente associadas uma à outra: os senhores, por exemplo, não eram todos brancos, livres e europeus; nem os africanos eram todos escravos etc.
Por isso, afirmo que não podemos mais trabalhar com conceitos tão polarizados, com oposições simplistas que separam radicalmente economia e cultura, cultura e sociedade, e assim por diante. Como dizia Hobsbawm em um artigo sobre a história social, o historiador das idéias talvez possa não prestar muita atenção aos aspectos econômicos e o historiador econômico talvez não precise pensar em Shakespeare, mas o historiador social que não levar em conta os dois não vai muito longe (1971, p.25). Passados mais de 20 anos, diria que a balança pendeu cada vez mais para a cultura. Os trabalhos recentes da história social vêm demonstrando que não só "novos" aspectos da experiência humana devem ser levados em conta, mas que eles só podem ser explicados ou interpretados se atentarmos para as complexas relações culturais que os informam.
Isso diz respeito também aos debates teóricos mais amplos que atravessam a história social. Talvez o mais importante, a meu ver, seja aquele emblematicamente travado entre Chartier e Darnton: até que ponto podemos ultrapassar a "textualidade" dos documentos para alcançar as práticas sociais? É possível chegarmos a conhecer a história, os valores e as ações, a cultura de pessoas que nada deixaram registrado? Restritos a interpretar a interpretação de terceiros, ficaremos irremediavelmente circunscritos ao terreno das representações?
Estaremos presos às tramas dos relatos de Nicolas Contat que em 1762 narrou suas experiências numa oficina gráfica em Paris no final da década de 1730, ou de Jean de Corras, o juiz que presidiu o processo contra o falso Martin Guerre em 1560, para citar um outro exemplo (Davis, 1987), - ou podemos, através destes relatos, chegar a conhecer as esperanças e sentimentos dos camponeses do sul da França no século XVI ou os motivos que levaram os trabalhadores de uma certa gráfica em Paris a massacrarem gatos e não cães em 1730?
A tensão entre práticas e representações atravessa a "nova história social" tanto quanto a "nova história cultural" e constitui-se num dos eixos centrais do debate a respeito dos limites do conhecimento histórico nestas duas áreas. Do meu ponto de vista, os historiadores contemporâneos sempre têm em mente que os documentos possuem apresentam "filtros" e "opacidades" - temos que decidir se permanecemos amarrados a estes obstáculos ou se podemos usá-los para conhecer as ações humanas no passado: entre práticas e representações, quais os limites do conhecimento que pretendemos produzir? As críticas feitas por Chartier ao trabalho de Darnton não são irrelevantes e precisamos aprimorar nossos conhecimentos sobre as fontes que utilizamos. Afinal, como diz Ginzburg (1990) a respeito dos processos inquisitoriais, podemos até mesmo utilizar as analogias e "traduções" feitas pelos inquisidores como instrumentos para nos aproximarmos das crenças dos camponeses do início da época moderna... Conhecer os parâmetros no interior dos quais as fontes que utilizamos foram produzidas é condição primordial do trabalho do historiador. História cultural e história social entrelaçam-se, aqui, inevitavelmente.
No entanto, talvez a principal questão que tenhamos que enfrentar seja a da necessidade de retomar a lição deixada pela primeira geração dos Annales: precisamos de bons problemas para fazermos uma boa história. Hoje eles não mais podem ser formulados sem levar em conta as dimensões culturais e sociais e vice-versa. A dissociação entre as duas, a predominância de uma sobre a outra nos leva às questões apontadas por Burke. A associação entre elas nos permite fugir ao mesmo tempo da fragmentação, da despolitização e do diletantismo que tantas vezes ainda vemos presente na história cultural.
Referências Bibliográficas
Chartier, Roger. Text, symbols, and frenchness. The Journal of Modern History, 57 (4): 682-695, 1985.
Darnton, Robert. História e antropologia In: O beijo de Lamourette. São Paulo: Cia. das Letras, 1990. p. 284-303.
_____. Os trabalhadores se revoltam: o grande massacre de gatos na Rua Saint-Severin In: _____. O grande massacre de gatos. Rio de Janeiro: Graal, 1986, p. 103-139.
Davis, Natalie Zemon. O Retorno de Martin Guerre. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
Ginzburg, Carlo. O Inquisidor como antropólogo. Revista Brasileira de História, 21: 9-20, 1991.
_____. O Queijo e os vermes. São Paulo: Cia. das Letras, 1987. p. 32
Gutman, Herbert. Work, culture, and society in industrializing America, 1815-1919. In: _____. Work, culture, and society. New York: Vintage, 1976, p. 9-78.
HOBSBAWM, Eric. J. A formação da cultura da classe operária britânica In: _____. Mundos do trabalho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 251-272.
_____.From social history to the history of society. Daedalus, 100, 1971
Le Goff, Jacques. As mentalidades: uma história ambígua In: _____ & Nora, P. História: novos objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976. p. 68-83.
Thompson, Edward P. Patrician society, plebeian culture. Journal of Social History, 7 (4): 1974.