Não é nada fácil falar sobre cultura e sobre história cultural, já que tudo hoje parece impregnado e medido pela cultura. A "cultura" transformou-se na categoria chave para a compreensão do mundo contemporâneo e, como reconheceu recentemente Jameson, até mesmo os níveis políticos e ideológicos devem ser desemaranhados de seu modo primário de representação que é cultural. Peter Burke, no texto da sua palestra, começa exatamente por reconhecer esta dificuldade - dificuldade que temos até em definir os territórios, já que as tradicionais fronteiras de pesquisa foram quebradas - e, prefere pela menção a dois autores "clássicos" da história cultural: Burckhardt e Huizinga.
Elias Thomé Saliba
Das várias maneiras de aquilatar o reconhecimento destes "clássicos" da história da cultura, a mais sintomática é verificar o número de vezes que foram e ainda são citados, todas às vezes na qual se trata desse tema. Não por coincidência, portanto, que, da mesma maneira que Peter Burke, E.H. Gombrich, na sua famosa conferencia de 1967, sobre História cultural, também se refira reiteradamente às obras, senão clássicas, pelo menos fundadoras, de Burckhardt e Huiziga. [Gombrich, 1969] Também não é coincidência que Gombrich também partilhe do mesmo dilema - talvez o principal - apontando para uma história cultural: "como resistir à fragmentação sem voltar ao pressuposto do Zeitgeist ou, da unidade cultural"?
Gombrich descreve este afastamento dos "clássicos" como um abandono da metafísica hegeliana e analisa a construção de uma (nova) historiografia cultural por sobre os escombros dos alicerces do sistema hegeliano. É a busca difusa desta unidade cultural, que ele aponta nas obras de Burckhardt e na do seu seguidor, Huizinga - que constitui a tarefa teórica de uma história da cultura para estes "clássicos". Esta tarefa, observa Gombrich, guarda, estreitas semelhanças com o edifício hegelianos da história cultural, e como o seu corolário, o método de exegese: "tendo postulado a unidade de todas as manifestações de uma civilização", argumenta Gombrich o método consiste em tomar diversos elementos da cultura, por exemplo, a arquitetura grega e a filosofia grega, e perguntar como poderá demonstrar-se que são exemplos do mesmo espírito. No fim de uma tal interpretação de haver sempre triunfante QED euclidiano, pois foi essa mesma tarefa que Hegel atribui à história: descobrir em cada factual o principal geral que lhe subjaz." [Gombrich, 1969: 21-33]
A observação de Gombrich sobre os traços hegelianos nos dois autores considerados como "clássicos" da historiografia cultural, vem bem a propósito de identificar, por trás dos vários entendimentos de uma história cultural, as diferentes concepções teóricas e diferentes caminhos metodológicos. Podemos notar que é difícil discordar dos quatros aspectos, assimilados por Burke, que inviabilizam uma aceitação contemporânea de uma história cultural nos moldes "clássicos". Ninguém defende hoje, pelo menos de forma programática, uma história da cultura "suspensa no ar", ou seja, carente de um exame mais sólido dos entrecruzamentos de uma história social, embora também seja fácil verificar as dificuldades de praticar uma história cultural que resista às tentações de "dissolver" o social. O mesmo pode ser dito com relação ao pressuposto da existência de um "espírito da época", incluindo, como bem aponta Burke, a ingênua noção de uma homogeneidade cultural. A própria noção de Cultura, para além da "grande narrativa da civilização ocidental", alargou-se em direção de outras dimensões e outros territórios. Assim, só podemos concordar com tais aspectos, assimilados na palestra de Burke, com única ressalva de que, para nós, eles se constituem mais em sintomas do que propriamente a essência das questões presentes na proposta de uma renovada historiografia cultural.
O problema é que por trás destes sintomas está toda uma gama das mais concepções teóricas - e a mudança de enfoque da história cultural tem mais a ver com uma alteração do papel da teoria no trabalho historiográfico. Gombrich tem razão quando argumenta, no texto já citado, que a historiografia cultural procurou encontrar seus caminhos através do esforço em abandonar os traços metafísicos, presentes tanto no difuso hegelianismo e nos seus desdobramentos, quanto nas correntes marxistas posteriores. O mais forte traço, por assim dizer, "metafísico" estava expresso numa ênfase no dever ser (mais no que no ser) e em explicações, implícita e explicitamente teleológicas. Quase toda a produção historiográfica dos anos oitenta (falamos sempre em termos de tendências) foi, no fundo, uma crítica velada àquela concepção prescritiva, abstrata e, ao mesmo tempo normativa de Cultura, fundada em modelos. O conceito gramsciano de hegemonia - muito citado, pouco lido e ainda menos entendido na pratica historiográfica - de larga circulação na historiografia britânica do pós-guerra serviu de mote inspirador para muitos dos trabalhos mais importantes nesta área. Os historiadores da Cultura tratavam de emancipar-se de modelos que remetiam o social a outra coisa e não a si mesmo. A "cultura", com todo o seu arsenal simbólico e imaginário, passou a ser relacionada a uma totalidade histórica antes desprezada: como se formaram os mecanismos de dominação e de exploração entre os homens? Como estes mecanismos (ao nível do cultural) se confrontam, se difundiram e se perpetuam? Assim, os símbolos, as imagens, as mentalidades, as praticas culturais, foram consideradas como lugares de exercícios de poder, de dominação e de conflitos sociais.
Porque este retorno ao cultural era também sintoma de um cansaço com uma história saturada de estruturas, hierarquias, modos-de-produção, sistemas, subsistemas, modelos - enfim, da história como um processo sem sujeito. O operário fora das fábricas, a mulher pobre, os vadios, as prostitutas, as feiticeiras, o escravo urbano, os marginais, moleiros perseguidos, bizarros guerreiros medievais, camponeses encalacrados em processos, escritores e artistas obscuros - foram se incorporando como temas conspícuos da historiografia. Compreender como os homens do passado se compreendiam, como eles se constituíam a si mesmos, à sua totalidade e a sua própria história - tornou-se uma nova missão para os historiadores. O passado passou a ser visto como um feixe de práticas discursivas, como uma sucessão de versões que se sobrepunham umas às outras numa regressão quase infinita. Os objetos, antes inscritos e recortados de uma história social, fragmentaram-se e dissolveram-se num difuso território da indeterminação.
A própria dimensão cultural ganhou novos contornos: modo de expressão e de auto-elaboração de grupos sociais no correr da história, tornou-se, portanto, também de conflitos, de lutas, de possíveis não-equivalentes. A cultura passou a ganhar, nos livros de história, os contornos daquilo a que Sartre apenas vislumbrou, chamando de dimensão "prático-inerte" da vida humana, salientando, numa alusão famosa que, afinal, na história, "não se toma a Bastilha todos os dias". Assim, a história cultural, para além dos obstáculos, apontados por Burke a partir dos "clássicos", e dos quais ela tenta se livrar, pode ser geralmente redefinida como um estudo dos processos e práticas das quais se constrói um sentido e se forjam os significantes do mundo social.
Embora concordamos com o diagnóstico de Burke a respeito da história cultural, é necessário, portanto, acrescentar este diagnóstico, todas estas alterações do próprio estatuto teórico na compreensão da cultura e da história. Com a perda da confiança nas certezas da quantificação, com o abandono dos recortes ditos "clássicos", sejam geográficos ou temáticos; com o questionamento das noções ("mentalidades", "cultura popular", etc.) ou das categorias ("classes sociais, classificações socioprofissionais, etc.); com a desconfiança nos modelos interpretativos (estruturalistas, marxistas, demográficos, etc.), a História Cultural obriga-se hoje, cada vez mais, a buscar novos caminhos.(Chartier, 1995)".
Também consideramos problemático descrever (?), como se faz de passagem, a abordagem da atual história cultural como "antropologia histórica ou, história antropológica". E isto pelo simples fato de que a noção de cultura e, por conseguinte, suas respectivas derivações teóricas entre antropólogos, envolve uma diversidade de abordagens tão (ou mais) polêmica quanto entre os historiadores. Ou a noção de cultura, em Clifford Geertz e Lévi-Strauss, seria a mesma e partiria dos mesmos pressupostos teóricos?
Embora a corrente de maior prestígio entre os historiadores tenha sido a antropologia simbólica, associada à obra de autores como Mary Douglas, Victor Turner e Clifford Geertz, é necessário reconhecer estas diferenças na abordagem da própria categoria "cultura" - e isto, para além das simples alternativas entre globalidade e fragmentação. Os métodos etnográficos dessa vertente da antropologia cultural, fundados na interpretação dos elementos culturais, essencialmente como textos ou, como atos simbólicos, embalaram o trabalho de muitos historiadores. A extensão da noção de texto para todos os objetos e temas da história cultural levou Geertz, um dos antropólogos mais notáveis dessa corrente a falar numa "Nova Filosofia", que ele definiu como estudo da significação fixada e separada dos processos sociais que a engendraram". Os historiadores, salvo raríssimas exceções, partiram para transformar tudo em texto e encontrar no passado "estruturas de significado", "gabaritos simbólicos", sistemas simbólicos e outras variações. Comportamento não-escrito de resistência à mudança? Discurso político? Festas e folguedos comunitários? Crenças, tradições orais ou rituais? Tudo poderia ser visto pela grade da textualização, tudo poderia ser tratado como texto, ou seja, como um conjunto potencialmente significativo. Pretensamente munidos de um método, chamado de descrição densa, os historiadores acabam por passar ao largo da singularidade dos objetos, produzindo generalidades... A descrição densa de Geertz é uma miscelânea, define um antropólogo, é aquilo que todo antropólogo, munido de boas intenções tentou fazer depois das críticas do objetivismo, do colonialismo e do etnocentrismo. [Gomes Jr., 1992]
Afinal, todos desejamos que a antropologia histórica seja bem-vinda para a historiografia cultural, mas, com a condição do historiador fazer funcionar, como disse Thompson, aquela vigilante casa de cambio teórico, na alfândega epistemológica, ou seja, qualquer diálogo interdisciplinar só poderá ser legitimo se incorporar uma discussão de teoria e de métodos.
Peter Burke exemplifica os novos dilemas da historia cultural, tecendo comentários em torno das obras de Simon Schama e de Nicolau Sevcenko. A caracterização do livro de Sevcenko como "livro de fragmentos" parece-nos ligeira e, em todo caso, procede de uma leitura equivocada. Em primeiro lugar, Orfeu extático não é um livro sobre a Semana de Arte Moderna de 1922, mas um variadíssimo painel dos impasses da modernidade cultural brasileira, tendo como centro a urbanização acelerada de São Paulo, nos anos vinte. Nunca será demais lembrar - pois o silencio da critica a este respeito é assustador - que Orfeu Extático é ainda uma releitura original do modernismo paulista, através do seu ambíguo num cenário de desenraizamento e fragmentação que converge, rapidamente, para repotencializar atitudes nacionalistas e mitos de mobilização coletiva. Não custa lembrar que a semana de 1922 é caracterizada, no mesmo livro como um tour de force de propaganda em favor da arte moderna em São Paulo e apenas mais um evento entre a extensa programação de festas cívicas que aconteciam na cidade, inclusive com patrocínio e o incentivo do governador do Estado. Em todos os capítulos há uma sutil linha interpretativa, mostrando como a urbanização acelerada e a velocidade tecnológica conjugavam-se com símbolos regressivos e arcaicos, próprios de uma geração que não tinha mais um passado - e partia numa busca sôfrega pelas raízes tradicionais paulistas de bandeirantes, "caipiras estilizados", forjando todo um imaginários de mitos, novos ou tradicionais. O livro, como um todo, constitui uma desmistificação da aura de ilusão presente no gesto pretensamente inovador dos nossos modernistas, mostrando-se que, por trás da forma, do vocabulário e do repertório de imagens, subsistia a mesma tônica idealista, nativista, nacionalista e militante. A ritualização das fantasias coletivas, expressa o mito do orfismo, impregnada toda a reconstrução desse cenário e - só não vê que não quer - possibilita, em extensão, repensar criticamente os mitos populistas na história cultural brasileira. [Saliba, 1993]
Encontro cultural, circularidade entre cultura erudita e popular e processo de cotidianização - apontados por Burke como índices de um ponto de vista novo para seu estudo sobre o renascimento, constituem-se, na verdade em desafios heurísticos para o historiador da cultura. Historiador que, hoje, mais do que nunca, e ao contrario dos tempos nos quais a procura do Zeitgeist é que dava o tom, encontra talvez a sua tarefa mais complexa na busca empírica dessas pluralidades culturais. Porque, em História cultural, ou talvez mesmo no conhecimento histórico tout cour, mais difícil do que fornecer a receita, é fazer o bolo sem desandar a massa... O historiador deve esforçar-se por superar, heuristicamente, duas das dificuldades mais comuns aos estudos culturais: sair das prisões interpretativas dos "contextos" econômicos ou sociais ou sócio-culturais que a tudo explicam (ou simplificam) e afinar seu diapasão (e sua sensibilidade) para aquilo que Michel De Certeau chamou de "artes de fazer", ou seja, para uma lógica específica de algumas manifestações "populares" - lógica marcada pela contradição e pela ambigüidade - características, não raro, impermeáveis à lógica racional. Afinal, a partir de quais perspectivas falam os historiadores da cultura popular? - perguntavam De Certeau e D. Júlia em conhecido artigo - argumentando "que as noções que tais historiadores se utilizam, para construir a sua rede de inventário, foram todas retiradas das categorias do saber ou, mais amplamente, da cultura "culta". [De Certeau, e Júlia, 1989]
Em suma, a história cultural transformou-se na principal fronteira dos estudos históricos na atualidade, exatamente, porque não há, a rigor, entradas privilegiadas nem exigências previas para o estudo das culturas. Exigências prévias que faziam parte das concepções totalizantes, de extensão hegeliana ou não, mas, sempre fortemente marcadas por categorias teleológicas que, afinal, viam a história como exemplo de evolução "progressiva" e de conjunto de toda humanidade. Neste caso, nem é preciso ser pós moderno, para continuar acreditando que o pensamento racionalista conduza, necessariamente, ao progresso humano...
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Referências Bibliográficas:
Gombrich, Ernst. In search on Cultural History. Oxford: Oxford University Press, 1969.
Saliba, Elias Th. Cultura Modernista em São Paulo Estudos Históricos, 11: 128-132, 1993
Chartier, Roger, Faire de l’Histoire après 20 annes Le Monde des livres, 24.02.95, p.4.
Gomes Jr., Guilherme Simões. A hermenêutica cultural de Clifford Geertz .Margem, 1. 37-46, 1992.
De Certeau, Michel & Júlia, Dominique. A beleza do morto: o conceito de cultura popular In: Revel, J. A Invenção da Sociedade. Lisboa: Difel, 1989, p. 63-64.
Falcon, Francisco J. Calazans. A História Cultural. In: Rascunhos de História. Rio de Janeiro: Puc, 1991.
http://www.uem.br/~dhi/Rev_a02.htm
Das várias maneiras de aquilatar o reconhecimento destes "clássicos" da história da cultura, a mais sintomática é verificar o número de vezes que foram e ainda são citados, todas às vezes na qual se trata desse tema. Não por coincidência, portanto, que, da mesma maneira que Peter Burke, E.H. Gombrich, na sua famosa conferencia de 1967, sobre História cultural, também se refira reiteradamente às obras, senão clássicas, pelo menos fundadoras, de Burckhardt e Huiziga. [Gombrich, 1969] Também não é coincidência que Gombrich também partilhe do mesmo dilema - talvez o principal - apontando para uma história cultural: "como resistir à fragmentação sem voltar ao pressuposto do Zeitgeist ou, da unidade cultural"?
Gombrich descreve este afastamento dos "clássicos" como um abandono da metafísica hegeliana e analisa a construção de uma (nova) historiografia cultural por sobre os escombros dos alicerces do sistema hegeliano. É a busca difusa desta unidade cultural, que ele aponta nas obras de Burckhardt e na do seu seguidor, Huizinga - que constitui a tarefa teórica de uma história da cultura para estes "clássicos". Esta tarefa, observa Gombrich, guarda, estreitas semelhanças com o edifício hegelianos da história cultural, e como o seu corolário, o método de exegese: "tendo postulado a unidade de todas as manifestações de uma civilização", argumenta Gombrich o método consiste em tomar diversos elementos da cultura, por exemplo, a arquitetura grega e a filosofia grega, e perguntar como poderá demonstrar-se que são exemplos do mesmo espírito. No fim de uma tal interpretação de haver sempre triunfante QED euclidiano, pois foi essa mesma tarefa que Hegel atribui à história: descobrir em cada factual o principal geral que lhe subjaz." [Gombrich, 1969: 21-33]
A observação de Gombrich sobre os traços hegelianos nos dois autores considerados como "clássicos" da historiografia cultural, vem bem a propósito de identificar, por trás dos vários entendimentos de uma história cultural, as diferentes concepções teóricas e diferentes caminhos metodológicos. Podemos notar que é difícil discordar dos quatros aspectos, assimilados por Burke, que inviabilizam uma aceitação contemporânea de uma história cultural nos moldes "clássicos". Ninguém defende hoje, pelo menos de forma programática, uma história da cultura "suspensa no ar", ou seja, carente de um exame mais sólido dos entrecruzamentos de uma história social, embora também seja fácil verificar as dificuldades de praticar uma história cultural que resista às tentações de "dissolver" o social. O mesmo pode ser dito com relação ao pressuposto da existência de um "espírito da época", incluindo, como bem aponta Burke, a ingênua noção de uma homogeneidade cultural. A própria noção de Cultura, para além da "grande narrativa da civilização ocidental", alargou-se em direção de outras dimensões e outros territórios. Assim, só podemos concordar com tais aspectos, assimilados na palestra de Burke, com única ressalva de que, para nós, eles se constituem mais em sintomas do que propriamente a essência das questões presentes na proposta de uma renovada historiografia cultural.
O problema é que por trás destes sintomas está toda uma gama das mais concepções teóricas - e a mudança de enfoque da história cultural tem mais a ver com uma alteração do papel da teoria no trabalho historiográfico. Gombrich tem razão quando argumenta, no texto já citado, que a historiografia cultural procurou encontrar seus caminhos através do esforço em abandonar os traços metafísicos, presentes tanto no difuso hegelianismo e nos seus desdobramentos, quanto nas correntes marxistas posteriores. O mais forte traço, por assim dizer, "metafísico" estava expresso numa ênfase no dever ser (mais no que no ser) e em explicações, implícita e explicitamente teleológicas. Quase toda a produção historiográfica dos anos oitenta (falamos sempre em termos de tendências) foi, no fundo, uma crítica velada àquela concepção prescritiva, abstrata e, ao mesmo tempo normativa de Cultura, fundada em modelos. O conceito gramsciano de hegemonia - muito citado, pouco lido e ainda menos entendido na pratica historiográfica - de larga circulação na historiografia britânica do pós-guerra serviu de mote inspirador para muitos dos trabalhos mais importantes nesta área. Os historiadores da Cultura tratavam de emancipar-se de modelos que remetiam o social a outra coisa e não a si mesmo. A "cultura", com todo o seu arsenal simbólico e imaginário, passou a ser relacionada a uma totalidade histórica antes desprezada: como se formaram os mecanismos de dominação e de exploração entre os homens? Como estes mecanismos (ao nível do cultural) se confrontam, se difundiram e se perpetuam? Assim, os símbolos, as imagens, as mentalidades, as praticas culturais, foram consideradas como lugares de exercícios de poder, de dominação e de conflitos sociais.
Porque este retorno ao cultural era também sintoma de um cansaço com uma história saturada de estruturas, hierarquias, modos-de-produção, sistemas, subsistemas, modelos - enfim, da história como um processo sem sujeito. O operário fora das fábricas, a mulher pobre, os vadios, as prostitutas, as feiticeiras, o escravo urbano, os marginais, moleiros perseguidos, bizarros guerreiros medievais, camponeses encalacrados em processos, escritores e artistas obscuros - foram se incorporando como temas conspícuos da historiografia. Compreender como os homens do passado se compreendiam, como eles se constituíam a si mesmos, à sua totalidade e a sua própria história - tornou-se uma nova missão para os historiadores. O passado passou a ser visto como um feixe de práticas discursivas, como uma sucessão de versões que se sobrepunham umas às outras numa regressão quase infinita. Os objetos, antes inscritos e recortados de uma história social, fragmentaram-se e dissolveram-se num difuso território da indeterminação.
A própria dimensão cultural ganhou novos contornos: modo de expressão e de auto-elaboração de grupos sociais no correr da história, tornou-se, portanto, também de conflitos, de lutas, de possíveis não-equivalentes. A cultura passou a ganhar, nos livros de história, os contornos daquilo a que Sartre apenas vislumbrou, chamando de dimensão "prático-inerte" da vida humana, salientando, numa alusão famosa que, afinal, na história, "não se toma a Bastilha todos os dias". Assim, a história cultural, para além dos obstáculos, apontados por Burke a partir dos "clássicos", e dos quais ela tenta se livrar, pode ser geralmente redefinida como um estudo dos processos e práticas das quais se constrói um sentido e se forjam os significantes do mundo social.
Embora concordamos com o diagnóstico de Burke a respeito da história cultural, é necessário, portanto, acrescentar este diagnóstico, todas estas alterações do próprio estatuto teórico na compreensão da cultura e da história. Com a perda da confiança nas certezas da quantificação, com o abandono dos recortes ditos "clássicos", sejam geográficos ou temáticos; com o questionamento das noções ("mentalidades", "cultura popular", etc.) ou das categorias ("classes sociais, classificações socioprofissionais, etc.); com a desconfiança nos modelos interpretativos (estruturalistas, marxistas, demográficos, etc.), a História Cultural obriga-se hoje, cada vez mais, a buscar novos caminhos.(Chartier, 1995)".
Também consideramos problemático descrever (?), como se faz de passagem, a abordagem da atual história cultural como "antropologia histórica ou, história antropológica". E isto pelo simples fato de que a noção de cultura e, por conseguinte, suas respectivas derivações teóricas entre antropólogos, envolve uma diversidade de abordagens tão (ou mais) polêmica quanto entre os historiadores. Ou a noção de cultura, em Clifford Geertz e Lévi-Strauss, seria a mesma e partiria dos mesmos pressupostos teóricos?
Embora a corrente de maior prestígio entre os historiadores tenha sido a antropologia simbólica, associada à obra de autores como Mary Douglas, Victor Turner e Clifford Geertz, é necessário reconhecer estas diferenças na abordagem da própria categoria "cultura" - e isto, para além das simples alternativas entre globalidade e fragmentação. Os métodos etnográficos dessa vertente da antropologia cultural, fundados na interpretação dos elementos culturais, essencialmente como textos ou, como atos simbólicos, embalaram o trabalho de muitos historiadores. A extensão da noção de texto para todos os objetos e temas da história cultural levou Geertz, um dos antropólogos mais notáveis dessa corrente a falar numa "Nova Filosofia", que ele definiu como estudo da significação fixada e separada dos processos sociais que a engendraram". Os historiadores, salvo raríssimas exceções, partiram para transformar tudo em texto e encontrar no passado "estruturas de significado", "gabaritos simbólicos", sistemas simbólicos e outras variações. Comportamento não-escrito de resistência à mudança? Discurso político? Festas e folguedos comunitários? Crenças, tradições orais ou rituais? Tudo poderia ser visto pela grade da textualização, tudo poderia ser tratado como texto, ou seja, como um conjunto potencialmente significativo. Pretensamente munidos de um método, chamado de descrição densa, os historiadores acabam por passar ao largo da singularidade dos objetos, produzindo generalidades... A descrição densa de Geertz é uma miscelânea, define um antropólogo, é aquilo que todo antropólogo, munido de boas intenções tentou fazer depois das críticas do objetivismo, do colonialismo e do etnocentrismo. [Gomes Jr., 1992]
Afinal, todos desejamos que a antropologia histórica seja bem-vinda para a historiografia cultural, mas, com a condição do historiador fazer funcionar, como disse Thompson, aquela vigilante casa de cambio teórico, na alfândega epistemológica, ou seja, qualquer diálogo interdisciplinar só poderá ser legitimo se incorporar uma discussão de teoria e de métodos.
Peter Burke exemplifica os novos dilemas da historia cultural, tecendo comentários em torno das obras de Simon Schama e de Nicolau Sevcenko. A caracterização do livro de Sevcenko como "livro de fragmentos" parece-nos ligeira e, em todo caso, procede de uma leitura equivocada. Em primeiro lugar, Orfeu extático não é um livro sobre a Semana de Arte Moderna de 1922, mas um variadíssimo painel dos impasses da modernidade cultural brasileira, tendo como centro a urbanização acelerada de São Paulo, nos anos vinte. Nunca será demais lembrar - pois o silencio da critica a este respeito é assustador - que Orfeu Extático é ainda uma releitura original do modernismo paulista, através do seu ambíguo num cenário de desenraizamento e fragmentação que converge, rapidamente, para repotencializar atitudes nacionalistas e mitos de mobilização coletiva. Não custa lembrar que a semana de 1922 é caracterizada, no mesmo livro como um tour de force de propaganda em favor da arte moderna em São Paulo e apenas mais um evento entre a extensa programação de festas cívicas que aconteciam na cidade, inclusive com patrocínio e o incentivo do governador do Estado. Em todos os capítulos há uma sutil linha interpretativa, mostrando como a urbanização acelerada e a velocidade tecnológica conjugavam-se com símbolos regressivos e arcaicos, próprios de uma geração que não tinha mais um passado - e partia numa busca sôfrega pelas raízes tradicionais paulistas de bandeirantes, "caipiras estilizados", forjando todo um imaginários de mitos, novos ou tradicionais. O livro, como um todo, constitui uma desmistificação da aura de ilusão presente no gesto pretensamente inovador dos nossos modernistas, mostrando-se que, por trás da forma, do vocabulário e do repertório de imagens, subsistia a mesma tônica idealista, nativista, nacionalista e militante. A ritualização das fantasias coletivas, expressa o mito do orfismo, impregnada toda a reconstrução desse cenário e - só não vê que não quer - possibilita, em extensão, repensar criticamente os mitos populistas na história cultural brasileira. [Saliba, 1993]
Encontro cultural, circularidade entre cultura erudita e popular e processo de cotidianização - apontados por Burke como índices de um ponto de vista novo para seu estudo sobre o renascimento, constituem-se, na verdade em desafios heurísticos para o historiador da cultura. Historiador que, hoje, mais do que nunca, e ao contrario dos tempos nos quais a procura do Zeitgeist é que dava o tom, encontra talvez a sua tarefa mais complexa na busca empírica dessas pluralidades culturais. Porque, em História cultural, ou talvez mesmo no conhecimento histórico tout cour, mais difícil do que fornecer a receita, é fazer o bolo sem desandar a massa... O historiador deve esforçar-se por superar, heuristicamente, duas das dificuldades mais comuns aos estudos culturais: sair das prisões interpretativas dos "contextos" econômicos ou sociais ou sócio-culturais que a tudo explicam (ou simplificam) e afinar seu diapasão (e sua sensibilidade) para aquilo que Michel De Certeau chamou de "artes de fazer", ou seja, para uma lógica específica de algumas manifestações "populares" - lógica marcada pela contradição e pela ambigüidade - características, não raro, impermeáveis à lógica racional. Afinal, a partir de quais perspectivas falam os historiadores da cultura popular? - perguntavam De Certeau e D. Júlia em conhecido artigo - argumentando "que as noções que tais historiadores se utilizam, para construir a sua rede de inventário, foram todas retiradas das categorias do saber ou, mais amplamente, da cultura "culta". [De Certeau, e Júlia, 1989]
Em suma, a história cultural transformou-se na principal fronteira dos estudos históricos na atualidade, exatamente, porque não há, a rigor, entradas privilegiadas nem exigências previas para o estudo das culturas. Exigências prévias que faziam parte das concepções totalizantes, de extensão hegeliana ou não, mas, sempre fortemente marcadas por categorias teleológicas que, afinal, viam a história como exemplo de evolução "progressiva" e de conjunto de toda humanidade. Neste caso, nem é preciso ser pós moderno, para continuar acreditando que o pensamento racionalista conduza, necessariamente, ao progresso humano...
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Referências Bibliográficas:
Gombrich, Ernst. In search on Cultural History. Oxford: Oxford University Press, 1969.
Saliba, Elias Th. Cultura Modernista em São Paulo Estudos Históricos, 11: 128-132, 1993
Chartier, Roger, Faire de l’Histoire après 20 annes Le Monde des livres, 24.02.95, p.4.
Gomes Jr., Guilherme Simões. A hermenêutica cultural de Clifford Geertz .Margem, 1. 37-46, 1992.
De Certeau, Michel & Júlia, Dominique. A beleza do morto: o conceito de cultura popular In: Revel, J. A Invenção da Sociedade. Lisboa: Difel, 1989, p. 63-64.
Falcon, Francisco J. Calazans. A História Cultural. In: Rascunhos de História. Rio de Janeiro: Puc, 1991.
http://www.uem.br/~dhi/Rev_a02.htm
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