sexta-feira, 29 de maio de 2009

ENTREVISTA COM ROGER CHARTIER

"Não posso aceitar a idéia que está identificada com o pós-modernismo de que todos os discursos são possíveis porque remetem sempre à posição de quem o enuncia e nunca ao objeto", afirma o historiador em entrevista exclusiva.

Encontrei Roger Chartier no hall da Casa de Rui Barbosa no dia anterior a essa entrevista. Ele voltava do almoço com Sandra Pesavento, sua amiga e organizadora do Seminário de História Cultural, do qual estava participando. Sandra já lhe havia falado de mim e dito do meu interesse em conversar com ele, de modo que quando nos vimos de longe ela me acenou. Imediatamente, o professor Chartier veio ao meio encontro com aquele sorriso simpático que é uma de suas características. Pois Roger Chartier, a par de ser uma celebridade do mundo acadêmico, é extremamente simples, afável, quase carioca na maneira natural e bem-humorada de se aproximar das pessoas, de deixá-las à vontade. Marcamos a entrevista para a manhã do dia seguinte (16/09/2004), no Hotel Glória, onde o historiador gosta de se hospedar no Rio de Janeiro.

Sabendo o quanto Chartier tem sido entrevistado por historiadores e jornalistas e seguindo o meu pendor natural para conhecer a vida das pessoas, orientei minhas primeiras perguntas no sentido de conhecer um pouco da biografia do entrevistado. Chartier resistiu bravamente a se tornar ele mesmo objeto de estudo, mas no exercício legítimo desta resistência nos proporciona aqui uma interessante reflexão sobre a questão biográfica.

Entrevistado que facilita o trabalho do entrevistador, pois reage aos temas com clareza, vivacidade e erudição, o que ressalta do discurso de Chartier é o seu permanente interesse pelos temas relacionados ao seu trabalho. A maneira articulada e inteligente como as suas respostas brotam denunciam o intelectual em que trabalho e vida se confundem, tal como na proposição de Wright Mills: "A erudição é uma escolha de como viver e ao mesmo tempo uma escolha de carreira; quer o sabia ou não, o trabalhador intelectual forma seu próprio eu à medida que se aproxima da perfeição de seu ofício".

Diretor na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, e professor especializado em história das práticas culturais e história da leitura, Roger Chartier é um dos mais conhecidos historiadores da atualidade, com obras publicadas em vários países do mundo. Sua reflexão teórica inovadora abriu novas possibilidades para os estudos em história cultural e estimula a permanente renovação nas maneiras de ler e fazer a história.

Chartier foi professor convidado de numerosas universidades estrangeiras (Princeton, Montreal, Yale, Cornell, John Hopkins, Chicago, Pensilvânia, Berkeley etc) e publicou no Brasil os seguintes livros: “História da vida privada, vol. 3: da Renascença ao Século das Luzes” (Companhia das Letras); “Cultura escrita, literatura e história” (Artmed), “Formas do sentido - Cultura escrita: entre distinção e apropriação” (Mercado de Letras), “Os desafios da escrita” (ed. da Unesp), “A aventura do livro” (Unesp), A beira da falésia” (Editora da Universidade), “Do Palco à Página” (Casa da Palavra), “A ordem dos livros” (UnB), “História da leitura no mundo ocidental” (Ática), Práticas da leitura” (Estação Liberdade), “O poder das bibliotecas: a memória dos livros no Ocidente” (sob a direção de M. Baratin e C. Jacob, Ed. UFRJ) e “Leituras e leitores na França do Antigo Regime” (Unesp).


Quem é Roger Chartier? Como a sua obra se relaciona com a sua história de vida?

Roger Chartier: Tenho sempre uma certa prudência com questões pessoais. Acho que, quando a gente fala de si, constrói algo impossível de ser sincero, uma representação de si para os que vão ler ou para si mesmo. Gostaria de lembrar, a este propósito, o texto de Pierre Bourdieu sobre a ilusão biográfica ou a ilusão autobiográfica. Bourdieu critica este tipo de narrativa em que uma vida é tratada como uma trajetória de coerência, como um fio único, quando sabemos que, na existência de qualquer pessoa, multiplicam-se os azares, as causalidades, as oportunidades.

Outro aspecto da ilusão biográfica ou autobiográfica é pensar que as coisas são muito originais, singulares, pessoais, quando são, na verdade, freqüentemente, experiências coletivas, compartilhadas com as pessoas pertencentes a uma mesma geração. Ao fazer um relato autobiográfico é quase impossível evitar cair nesta dupla ilusão: ou a ilusão da singularidade das pessoas frente às experiências compartilhadas ou a ilusão da coerência perfeita numa trajetória de vida.

Penso que esse tipo de relato só tem sentido quando podemos relacionar um detalhe, algo que seria puramente anedótico, com o mundo social ou acadêmico em que se vive. Pierre Nora lançou a idéia de “ego-história” numa coletânea de ensaios onde estão reunidas oito autobiografias: George Duby, Jacques Le Goff, Pierre Duby, dentre outros. Eram autores conhecidos falando sobre sua trajetória pessoal ou relacionando-a com a escolha de determinado período ou campo histórico. Mas pessoalmente considero muito difícil evitar o anedótico ou o demasiado pessoal nesse tipo de relato. Como pensar em si, objetivando entender seu próprio destino social? Acho que é preciso primeiro situar-se dentro do mundo social e daí fazer um esforço de dissociação da personagem: a personagem que fala e a personagem sobre a qual se fala, que é o mesmo indivíduo.

Isto posto, podemos entrar, com uma certa cautela, na resposta à sua pergunta. Nasci em Lyon e pertenço a um estrato social fora do mundo dos dominantes, sem tradição no meio acadêmico. Minha trajetória escolar e universitária foi conseqüência desta origem. Na França, o traço dominante era a reprodução: o sistema escolar e universitário levava a que os filhos reproduzissem as mesmas posições sociais dos pais. Pierre Bordieu e Jean Claude Passeron trataram desse tema em dois livros. O primeiro, publicado em 1964, chamava-se “Os herdeiros” e o segundo, de 1970, “A reprodução”.

Naturalmente que há espaço para que as pessoas que vêm de outro horizonte social possam driblar essa tendência. A minha própria trajetória pertence a esta exceção. Para entendê-la é preciso um certo conhecimento da realidade social do pós-guerra na França, entre os anos 1950 e 60, quando predominava o sistema de reprodução, mas onde havia também alguma possibilidade de ascensão para gente de outra origem social. Acho, no entanto, que quando há este tipo de tensão entre uma forma dominante de escola e uma individualidade de origem diferente que consegue furar este sistema sempre se mantém algo dessa tensão, dessa dificuldade.


O historiador inglês, Richard Hoggart, em seu livro “The uses of literacy”, reflete sobre a sua própria trajetória de estudante bolsista oriundo de uma família de operários. Esta filiação ao lugar de origem, essa relação entre a autobiografia e objeto de estudo, foi extremamente proveitosa no caso de Hoggart, não lhe parece?

Chartier: Traduzido para o francês como “La culture du pauvre”, o livro de Hoggart é realmente maravilhoso, pois consegue articular elementos biográficos com uma reflexão profunda sobre a mídia voltada para as classes populares, neste caso a classe operária inglesa dos anos 1940 e 50. O principal propósito desse livro é questionar a idéia segundo a qual todos os leitores ou ouvintes das produções dessa indústria cultural acreditavam piamente em suas mensagens. Viveriam sob uma forma de alienação, submetidos aos modelos sociais que as mensagens dos “mass media” do tempo -rádio, cinema e revistas- impunham.

Hoggart queria mostrar que havia uma relação muito mais complexa, ambivalente, entre crer e não crer, aceitar a ficção e, ao mesmo tempo, ter a consciência de que se trata de um mundo irreal, um mundo de fábula, de ficção. A oposição entre nós e os outros era um elemento muito claro no livro de Hoggart, e a maneira como estabelece a relação entre história pessoal e discussão sociológica me parece muito justa e adequada.

Em Lyon, no entanto, não éramos uma classe operária no mesmo sentido de Hoggart. Vivíamos num mundo de artesãos que trabalhavam de uma maneira ou de outra na atividade dominante da cidade que é a seda. Havia algo como o que descreve Hoggart na relação com os horóscopos, com os diários de grande tiragem e as canções. Mas não havia apenas a circulação dos produtos culturais que descreve Hoggart, havia também um certo gosto por uma parte da cultura dominante. A ópera, por exemplo, era muito popular.

Na Lyon da minha infância ia-se à ópera como se ia ao cinema, duas, três vezes por semana. Era uma apropriação muito popular não de todo o repertório da ópera, mas principalmente da ópera italiana, de Verdi, dos franceses. Meu pai viu “Carmen” 25 vezes. Essa relação mudou entre os anos 1960 e 1970, quando este mundo dos artesãos foi gradativamente desaparecendo e, em seu lugar, surgiu uma fratura mais profunda entre o mundo dos que vão à ópera e o dos que gostam de outra forma de diversão.


Um aspecto que me pareceu interessante no livro de Hoggart é a importância que a literatura teve para a sua formação. Imagino que na França, onde a tradição literária é tão forte, uma formação baseada nessas leituras de mocidade deve influir na possibilidade de romper com o sistema da reprodução. Você não acha?

Chartier: De fato, na França, a literatura tinha muita importância na escola. Principalmente porque o currículo da escola primária utilizava para diversos exercícios pedagógicos fragmentos dos clássicos, de Victor Hugo, dos novelistas do século 19, como Alphonse Daudet. Dessa maneira, como a escola é obrigatória, cada um, até a idade de 14 anos, inclusive a gente das camadas mais populares, tinha uma relação direta, ainda que fragmentária, com esse corpus literário que define a literatura francesa.

Para os alunos dos liceus, havia também todo o repertório da literatura clássica do século 17: Corneille, Molière, Racine. Havia uma impregnação muito forte daquilo que, numa definição canônica, chamam de literatura. Não sei se isso ainda é assim hoje em dia, porque a escola primária ou secundária se desprendeu um pouco desse corpus canônico de textos e se abriu a autores contemporâneos.

A mídia também mudou muito. Recordo que nos anos 1960 havia somente uma rede de televisão que saía do ar às oito e meia da noite e onde se lia Corneille. Apresentar numa rede pública, com uma programação única para todos, às oito e meia, um texto clássico, é algo impensável hoje. Salvo nos canais particulares destinados a um certo público.

O mundo mudou profundamente no final dos anos 1960. 1968 foi um marco da ruptura cultural, não necessariamente no sentido que usualmente se pensa: de uma abertura, da quebra da autoridade, de formas mais abertas de comportamento. Mas o que também houve a partir de 68 foi o agravamento desse espírito de comercialização, com a destruição da dimensão cultural, por exemplo, da televisão.

Destruição no sentido de que não há apenas a possibilidade compartilhada por toda a gente de ver ou desligar a televisão. Agora há uma fragmentação infinita, há os canais para os que gostam de pop, para os que gostam de rock, da música clássica. É uma forma de fragmentação cultural que também se pode ver como uma forma de liberdade e de diversificação. Mas ao mesmo tempo, 68 marca também o desaparecimento de uma cultura compartilhada e arraigada numa referência como a literatura nacional e universal.

A minha geração foi, no Brasil, talvez a última em que a leitura dos clássicos da literatura universal era um hábito. Acho que isso criou um universo de referência para a nossa geração que é diferente dos jovens de hoje. De que maneira esse universo de referências culturais originadas da leitura dos clássicos está na base da visão de mundo do historiador de hoje em dia? Por outro lado, de que maneira esse universo de referência cultural mais ampliado contribuiu para a aceitação de abordagens interdisciplinares?

Chartier: Não devemos pensar que o passado era necessariamente melhor. Há autores que se especializaram nesse tipo de diagnóstico pessimista. Acho, ao contrário, que hoje se lê mais do que nos anos 1950. Inclusive porque o computador não é apenas um novo veículo para imagens ou jogos. Ele é responsável também pela multiplicação da presença do escritor nas sociedades contemporâneas. No computador tanto se pode lê os clássicos como publicações acadêmicas e revistas em geral. Podem não ser necessariamente leituras fundamentais, enriquecedoras, mas são leituras.

Não se pode dizer, portanto, que estejamos assistindo ao desaparecimento da cultura escrita. O problema é qual cultura escrita persiste. É difícil entender a articulação sempre instável entre as novas formas culturais, as novas preferências dos jovens e o que se mantém como uma referência fundamental. O fato de que os textos lidos pelos adolescentes no computador, suas leituras prediletas, não pertençam àquele repertório definido como literário não é necessariamente algo ruim. O problema está numa certa discrepância entre essa nova cultura e os modelos de referência que, a nosso ver, seriam mais consistentes e forneceriam mais recursos para a compreensão do mundo social, a compreensão de si mesmo e a representação do outro.

Para isto não tenho resposta, mas me parece que há duas posições que se deve evitar. Uma é a que considera que essa presença da literatura na realidade cotidiana pertence a um mundo definitivamente desaparecido. Não me parece um diagnóstico adequado, pois há, na atualidade, um esforço dentro da escola e fora da escola para preservar a cultura literária. O que torna difícil identificar esse esforço é que, se antes ele era evidente e se concentrava em algumas atividades, hoje ele se diversifica através, por exemplo, dos novos e variados meios de comunicação.

A outra posição é a dos que pensam que não há nada de proveitoso, útil ou fundamental nesse novo mundo. Postura que me parece muito inadequada quando pensamos nas possibilidades educativas criadas pelas novas tecnologias, nas diversas experiências para a alfabetização, para a transmissão do saber à distância.

Acho que é responsabilidade dos intelectuais, dos meios de comunicação, dos editores, assegurar a transmissão de um saber sobre o mundo, através de projetos que vinculem a dimensão estética ou a dimensão científica com a existência cotidiana. Para que as pessoas não sejam totalmente submetidas às leis do mercado, à incerteza ou à inquietude, o essencial é dar a cada um instrumentos que lhe permita decifrar o mundo em que vive e a sua própria situação neste mundo. Esse saber que pode vir da sociologia, da literatura, da história, possibilitaria a resistência às imposições dominantes que vêm de todas as partes: dos discursos ideológicos, das mensagens dos veículos de comunicação, da cultura de massa etc.

O que Hoggart descrevia em seu maravilhoso livro era a maneira como também podemos nos plasmar, nos construir através do conhecimento. Trata-se de uma experiência densa e forte que se pode obter através dos textos literários, do presente ou do passado, uma perspectiva que envolve tanto a transmissão da beleza, mas também uma dimensão crítica. Mas me parece que, se há um caminho não literário para se adquirir saber sobre o mundo social, por que procurar os instrumentos mais vulneráveis para decifrar esse mundo?


Apesar da valorização teórica que a moderna historiografia tem promovido da narrativa sempre vejo os historiadores a trabalharem ainda com um certo pudor, acompanhando cada fato narrado de uma análise minuciosa daquele aspecto ou então recorrendo ao chamado argumento de autoridade. Parece-me que isso prejudica o resultado do ponto de vista da narrativa, pois, em geral, a torna fragmentada e desinteressante. O que você acha?

Chartier: Entre os anos 1950 e 60, os historiadores buscavam uma forma de saber controlado, apoiado sobre técnicas de investigação, de medidas estatísticas, conceitos teóricos etc. Acreditavam que o saber inerente à história devia se sobrepor à narrativa, pois achavam que o mundo da narrativa era o mundo da ficção, do imaginário, da fábula. Desta perspectiva os historiadores rechaçaram a narrativa e desprezaram os historiadores profissionais que seguiam escrevendo biografias, história factual e tudo isso. A tradição francesa dos Annales foi uma das que levou mais longe essa tendência.

Hoje, no entanto, a situação tornou-se muito mais complicada. Uma das razões é que autores como Hayden White e Paul Ricoeur mostraram que, mesmo quando os historiadores utilizam estatísticas ou qualquer outro método estruturalista, produzem uma narrativa. Quer dizer: quando dizem que tal coisa é conseqüência ou causa de outra, estabelecem uma ordem seqüencial, se valem de uma concepção da temporalidade, que é a mesma de uma novela e de um relato historiográfico.

Ao mesmo tempo, entidades abstratas, como classes, valores e conceitos, atuam no discurso dos historiadores quase como personagens, havendo toda uma forma de personificação das entidades coletivas ou abstratas. Dessa forma o historiador não pode evitar a narração, inclusive quando a rechaça conscientemente. Pois a escrita da história por si mesma, pela maneira de articular dos eventos, pela utilização da noção de causalidade, trabalharia sempre com as mesmas estruturas e com as mesmas figuras de uma narrativa de ficção.

É a partir desse parentesco entre a narrativa de ficção e a narrativa histórica que se coloca a questão: onde está a diferença? Alguns críticos pós-modernos adotaram um relativismo radical e decidiram que não havia diferença e que a história era ficcional não apenas no sentido da forma. Ou seja: não diziam que não há verdade na história, mas que a verdade do saber histórico era absolutamente semelhante à verdade de uma novela.

Outros historiadores, dentre os quais eu me insiro, acreditam que há algo específico no discurso histórico, pois este é construído a partir de técnicas específicas. Pode ser uma história de eventos políticos ou a descrição de uma sociedade ou uma prática de história cultural, para produzi-la o historiador deve ler os documentos, organizar suas fontes, manejar técnicas de análise, utilizar critérios de prova. Coisas com as quais um novelista não deve se preocupar.

Portanto, se é preciso adotar essas técnicas em particular, é porque há uma intenção diferente no fazer história: que é restabelecer a verdade entre o relato e o que é o objeto deste relato. O historiador hoje precisa achar uma forma de atender a essa exigência de cientificidade que supõe o aprendizado da técnica, a busca de provas particulares, sabendo que seja qual for a sua forma de escrita esta pertencerá sempre à categoria dos relatos, da narrativa.

Alguns historiadores decidiram então que não valia à pena lutar contra algo inevitável e passaram a utilizar-se dos recursos mais persuasivos da narrativa a serviço de uma demonstração histórica. Adotaram formas de narrativa que permitiam assegurar, digamos assim, a mise-en-scène da prova. Historiadores como Carlo Ginzburg utilizam técnicas de narração que são até mesmo mais cinematográficas do que propriamente novelescas. Outros entrecruzam diversas histórias de vida.

Acho que a situação atual não é a de uma oposição absoluta entre a narrativa como ficção e a história como saber, mas de um saber que se escreve através da narrativa e daí ser necessária uma reflexão sobre que tipo de narrativa adotar. Uma narrativa onde se respeite o discurso do saber, mas que, ao mesmo tempo, seja atrativa para um público de leitores. Não é uma tarefa fácil, mas há exemplos que demonstram que pode ser feito.

Talvez aqui se possa colocar também a questão do talento do narrador. Alguns livros de história, como os de Robert Darnton, Nathalie Zemon Davies e Michel Volvelle, são bem escritos, agradáveis de ler...

Chartier: É uma questão de talento, sim, mas também do campo de investigação. Penso que há formas de saber nas ciências humanas e sociais que são absolutamente fundamentais, mas que não podem se apresentar através de maneiras tão sedutoras ou mesmo que não pretendem necessariamente encontrar um grande público.

Se alguém trabalha, por exemplo, sobre técnicas arqueológicas na Mesopotâmia antiga ou sobre algum tema da história econômica mais difícil, evidentemente os critérios de cientificidade exigidos para a realização do trabalho o afastam de um formato mais sedutor e fácil para os leitores. Se alguém trabalha, por exemplo, sobre a filologia grega, estabelecendo o texto de uma tragédia de Sófocles, é uma contribuição fundamental para o conhecimento, mas não vamos pensar que vá vender 100 mil exemplares.

Digo isso porque me parece que na França, particularmente, após o sucesso de livros como o “Montaillou”, de Le Roy Ladurie, fixou-se a idéia de que toda a obra de história deveria necessariamente atrair um grande público. A partir daí as editoras passaram a privilegiar os livros que tratavam de temas que estivessem na moda, adotando uma atitude de desprezo para com trabalhos mais modestos ou difíceis.

Por um lado é muito bom pensar que o historiador não deve permanecer em sua torre de marfim, que assim está fazendo algo útil ao fornecer um instrumento crítico ao público para pensar seu passado coletivo e seu mundo contemporâneo. Mas isto se torna perigoso quando a busca pelo êxito afasta o historiador dos objetos ou critérios próprios da prática científica.

O importante é estabelecer formas de mediação. Atualmente, junto com Michèlle Perrot e Jacques Le Goff, ocupo-me de um programa de rádio em Paris, “Les matins de France culture”, onde discutimos livros que dificilmente podem encontrar um grande público. Mas, se há a mediação, o público pode ter idéia do progresso do saber. Isso é um exemplo do que considero uma forma mediatizada de conhecimento.


Há algum tempo fiz a resenha de um livro de ensaios do antropólogo James Clifford. Tive uma certa sensação de desconforto diante de leitura pós-moderna e desconstrutivista que ele faz da tradição etnográfica. A etnografia foi um instrumento criado pela cultura ocidental para entender pessoas de outras culturas, não significando que aquelas pessoas tivessem a mesma ânsia de nos entender ou de entenderem a si mesmas, ou, ainda, que achassem que a etnografia seria a ferramenta adequada para isto. Cada cultura tem os seus próprios meios de se relacionar com o mundo. A meu ver, sempre se parte de uma base histórica, ideológica ou cultural para fazer alguma coisa, para pensar ou para agir. O pós-modernismo foi um exercício de desconstrução da cultura ocidental, e nossa base é o universo de informações que compõem a cultura ocidental. Ela é que nos fornece os instrumentos e a motivação para pensarmos sobre nós e sobre o mundo. E até para fazer a crítica dessa maneira de pensar.

Chartier: Penso que, em certo sentido, o trabalho de James Clifford está em paralelo ao de Hayden White. Acho que é algo legitimo fazer historiadores e antropólogos refletirem sobre a própria escrita. Durante muito tempo a escrita foi vista como um meio neutro para falar sobre o passado ou para descrever o outro. Daí ter sido fundamental fazer dela um objeto de reflexão, tal como fez White, ao pensar sobre o papel, na escrita do historiador, de elementos como a retórica e as figuras que se manejam para escrever sobre o passado. O mesmo fez James Clifford com relação aos dispositivos que os antropólogos utilizam em seu trabalho.

Outra contribuição fundamental dessa corrente foi a idéia de que há uma descontinuidade necessária entre o presente e o passado, ou entre o antropólogo e o outro, a qual não pode ser anulada pela idéia de universalidade e de compreensão de si próprio. Tal concepção se apóia sobre o conceito de descontinuidade de Foucault, que demonstrou que existe ruptura em conceitos como de loucura, medicina, clínica e sexualidade. Essa atitude proporciona uma consciência dos limites da utilização de técnicas de investigação ou de observação. Supõe também uma forma de ética na investigação, no encontro com o outro, do passado ou de hoje.

Mas tanto no texto de White quanto no de Clifford há um relativismo absoluto. Não posso aceitar a idéia que está identificada com o pós-modernismo de que todos os discursos são possíveis porque remetem sempre à posição de quem o enuncia e nunca ao objeto. De acordo com essa visão, o discurso é sempre autoproduzido: não diz nada sobre o objeto e diz tudo sobre quem o escreveu.

Parece-me uma conclusão equivocada, a partir de premissas interessantes, porque, tanto no caso da história quanto no da antropologia, uma produção de saber é possível e necessária. É também uma perspectiva que se vale dos argumentos do politicamente correto, assumindo-se como a forma de respeitar o outro, aquele que está absolutamente desconhecido, conservando-lhe a identidade própria.

Esta justaposição de situações históricas ou situações antropológicas onde não existe nenhuma comunicação, nenhum intercâmbio, nem sequer de saberes, parece uma forma terrivelmente reducionista daquilo que poderia ser um projeto de conhecimento compartilhado. Razão pela qual estou completamente em desacordo com essa postura pós-moderna, essa idéia de que não há nenhuma possibilidade de conhecimento.

É diferente dizer que esse conhecimento sempre esteve organizado a partir dos esquemas de percepção, de classificação e compreensão do observador. E que, se existem formas de descontinuidade culturais, é preciso, assim mesmo, fazer um esforço para entender o passado e o outro. Pois foi a partir dessa dupla perspectiva que se construiu um saber, e me parece que os trabalhos fundamentais da história e da antropologia demonstram que este saber não só é possível como também pode ser oferecido ao outro para conhecimento de si mesmo -para fazer com que o objeto do saber possa transformar-se em seu próprio manufator, não dependendo apenas do conhecimento produzido pelo antropólogo ou historiador.

Parece-me que, assim, temos a circulação da força crítica do saber. Se isso for destruído, cai-se num relativismo absoluto. O que me parece seria uma conclusão trágica e ao mesmo tempo muito ideológica.


Neste momento temos a sensação de que tudo se tornou possível: práticas que haviam sido banidas por um conjunto de acordos internacionais no pós-guerra vêm sendo implementadas pelos EUA na guerra no Iraque ou ao manterem pessoas presas sem julgamento em Guantânamo. Ao mesmo tempo, ocorre a perda de força de organismos internacionais, como a ONU. Na medida em que sabemos que as grandes idéias são filtradas e incorporadas à agenda do senso comum, a perspectiva radicalmente relativista do pós-moderno não teria influído de alguma forma nesse tipo de política, esvaziando a confiança em algumas conquistas do humanismo e da cultura do Ocidente?

Chartier: O maior paradoxo do pós-modernismo é que nasce de uma perspectiva crítica das autoridades, das hierarquias e dos elementos dominantes, mas, com a introdução da dimensão epistemológica do relativismo, a análise fica sem nenhum recurso para fundamentar esta postura crítica. Pois, se tudo é possível, todos os discursos podem ser diferentes por sua competência retórica, por sua arte de expressão, mas em termos de saber e como instrumento crítico não há diferença entre eles. Cria-se uma tensão fundamental.

Hayden White, por exemplo, é um humanista que compartilha os valores morais do humanismo. Mas a aplicação de sua perspectiva não dá à história instrumentos para produzir um conhecimento crítico, desmentir as falsificações e estabelecer um saber verdadeiro. Porque, se não há nenhum critério para estabelecer diferenças entre os discursos dos historiadores, torna-se muito difícil criticar os discursos enganosos, as falsificações e as tentativas de reescrita do passado. Este é, me parece, o grande limite do pós-modernismo: a contradição entre sua intenção e a sua epistemologia.


Em seu livro “O grande massacre dos gatos”, Robert Darnton adota as idéias e os métodos de Clifford Gertz, dando tratamento etnográfico a um objeto de estudo histórico. Esse foco ampliado sobre um detalhe me parece produzir uma visão distorcida do objeto. De que forma você vê esse tipo de investigação?

Chartier: Houve um grande debate depois da publicação do livro de Darnton. Uma das críticas mais fortes feitas a ele tem a ver com a sua identificação com as idéias de Geertz e de sua tendência à textualização das estruturas, das práticas rituais e de toda a cultura. O ponto de partida de Darnton, utilizando a idéia de Geertz de que um rito pode ser lido como um texto, era que se podia pensar as práticas sociais como se fossem textos.

Em “O grande massacre dos gatos” as fontes de que Darnton se vale são, sobretudo, textuais. Os historiadores que trabalham com textos desenvolvem, em primeiro lugar, uma análise crítica do texto. No entanto, Darnton quase não avança nessa direção. Para tratar o rito como texto há como que uma supressão do texto em que o rito está narrado. Quando se analisa meticulosamente aquele trabalho surge um problema: não se pode dizer se a matança é imaginária ou real, se teria ocorrido realmente. Ele menciona o texto de um artesão, mas não lhe dá maior importância, porque pretende se colocar imediatamente na situação de um espectador do massacre. Como Geertz em Bali.

Não podemos pensar que há uma identidade necessária entre a lógica propriamente textual e as estratégias das práticas. Foucault estudou em seus livros a tensão entre as séries discursivas e os sistemas não-discursivos. Michel de Certeau plasmou isto na tensão entre as estratégias discursivas e as táticas de apropriação. Bourdieu refletiu sobre as razões escolásticas e o sentido prático. Nesses três casos de vocabulários teóricos diferentes o que há em comum é a diferenciação entre a lógica da produção textual ou da decifração de um texto utilizando as escritas e as práticas ou estratégias de outras formas de construção, que são as práticas cotidianas, habituais etc.

Isto está em oposição à idéia de Geertz que parece querer ver todas as práticas do mundo social como se fossem textos decifráveis. O mais complicado para o historiador é que essas práticas não-textuais, em geral, se encontram através de textos. O desafio fundamental para o historiador é entender a relação entre os textos disponíveis e as práticas que estes textos proíbem, prescrevem, condenam, representam, designam, criticam etc. O essencial é pensar a irredutibilidade entre a lógica da prática e a lógica do discurso que, tal como dizia Bourdieu, não se podem confundir.

As práticas do passado são acessíveis a nós, em geral, através de textos escritos. E o historiador escreve sobre essas práticas. Ao descrevê-las o historiador tem que ter claro que a operação da escrita não cria uma forma de relação particular com essas práticas, que se tornaram conhecíveis através de sua mediação. O desafio fundamental é pensar conceitual e metodologicamente a articulação e a distância entre as práticas e os discursos e evitar a repetição daquele momento, entre os anos 1950-60, em que a metáfora do texto se aplicava a tudo: aos ritos, à sociedade etc. Era muito cômodo.


Então qualquer documento que não seja escrito, que não seja texto, coloca para o historiador esse tipo de problema. Tal é o caso dos que trabalham com imagens -objeto que não é possível enfrentar através de métodos ou regras muito esquemáticos, não lhe parece?

Chartier: A imagem é um exemplo magnífico para pensar o que dissemos, pois não é uma prática disseminada, é silenciosa, não é sequer um texto. Creio que querer analisá-la como texto é uma perspectiva teoricamente equivocada, porque a lógica de construção da imagem ou de decifração da imagem não é a mesma do texto. Parece-me que a lógica gráfica e a lógica textual não se identificam.

A lógica textual é necessariamente uma lógica linear, a escrita se descreve através de ordem seqüencial. E a leitura, inclusive quando se vai de um fragmento a outro, é uma leitura seqüencial. A observação de um quadro não está organizada segundo esta ordem seqüencial. É algo com uma lógica própria e que não se identifica com a lógica textual. Há uma questão de diferentes planos, de diferentes entradas.

Para restituir a lógica na decifração da imagem, o historiador necessariamente deve manejar a ordem seqüencial ou linear da escrita. O resultado desse esforço é uma tensão. O que não significa ser essa uma tarefa impossível, mas que é preciso estar consciente de suas dificuldades. Meu amigo Louis Marin, cuja obra admiro, construiu uma argumentação a propósito de como fazer textos com imagens. Ele cita como exemplo “Os salões”, artigo em que Diderot transforma um quadro em texto para criticá-lo. E toda a crítica estética supõe essa operação de fazer textos com imagens.

O contrário disto, fazer imagens a partir de textos, é o princípio de toda a iconografia cristã. Textos se transformam em imagens, e vice-versa, mas nunca são idênticos entre si, pois há toda uma série de interpretações, mediações, apropriações. É possível utilizar a metáfora da imagem como texto, ou da observação como leitura. Porém deve-se ter consciência de que é apenas uma forma de falar, que não há uma adequação lógico-teórica entre os dois documentos e que nunca se dissolve a irredutibilidade da diferença.

Uma demonstração perfeita desta irredutibilidade verificou-se quando alguns poetas tentaram romper com essa lógica linear e seqüencial e apresentaram o texto escrito como se fosse um grafismo, com uma forma em que se podia entrar no texto de maneira diversa, sem a imposição da ordem linear da escrita. Foi um esforço para fazer com que a escrita fosse mais identificada pela sua forma gráfica do que por seu conteúdo semântico. A meu ver as questões relativas a imagens estarão sempre trafegando entre o espaço que vai da crítica textual à crítica estética.


Uma outra questão é a do estilo, da retórica no texto de história. Por exemplo, o tratamento irônico do problema, tal como você identificou em Hayden White.

Chartier: Quando Hayden White descreve as quatro figuras retóricas que seriam sempre utilizadas pelos historiadores, inclui, ao lado da metáfora, da sinédoque e da metonímia, a ironia como uma forma de escrita histórica que se pode utilizar inclusive para temas que não tem a ironia como objeto. Não conheço muitos historiadores que tenham empregado esse recurso para escrever textos de história, talvez por causa da tensão que o uso da ironia provoca no texto.

Creio que fazer rir era a idéia de Darnton em “O grande massacre dos gatos”, ao divulgar o texto sobre aqueles artesãos para os quais era muito divertido matar gatos. Em todas essas obras verificamos que estamos diante de uma descontinuidade. Os dispositivos, os temas, as formas, os gêneros que, em um dado momento, provocam o riso ou o sorriso são historicamente definidos.

Ao mesmo tempo, se podemos entender porque esse fato fazia rir à gente do Renascimento é porque há continuidade suficiente para que os outros aspectos sejam percebidos, entendidos e compreendidos. E o que mais temos discutido com o pós-modernismo é sobre a necessidade de reconhecer as descontinuidades históricas sem cair no relativismo que estabelece que não há relação possível através de uma distância profunda e que assim é impossível qualquer compreensão do outro.


Ultimamente, aqui no Brasil, têm circulado na internet textos falsamente atribuídos a escritores e jornalistas célebres. São textos que têm uma certa identidade com o estilo do suposto autor, mas que são renegados com indignação. Já houve também casos de textos atribuídos a Jorge Luís Borges e a Gabriel García Márquez, que, depois de muito terem rodado na rede, os especialistas negaram ser deles. Que outros problemas para a questão da autoria a internet provoca?

Chartier: Trata-se de uma atitude inversa à do plágio, que é roubar um trabalho e assiná-lo, enquanto aqui se rouba o nome de alguém para por no seu próprio texto. Mas este não é um fenômeno diretamente vinculado à internet. Esta apenas modificou a forma de circulação dessas falsificações.

Lope de Vega, por exemplo, em pleno século 16, se queixava que outros dramaturgos utilizavam seu nome para vender comédias muito ruins que ele nunca havia escrito. Para se proteger, ele divulgou uma lista com todas as suas obras, que eram muitas, cerca de 450, pois ele era muito prolífico.

No mundo da imprensa e da representação teatral essa apropriação do nome pode ter diversos fins, no caso de Vega servia para vender as comédias. Pode também servir para pensar em si mesmo como capaz de escrever um texto de Borges. No caso de Borges, parece um fenômeno bem-vindo, uma vez que ele escreveu muitas obras assinadas com nomes que não eram o seu, como se tivessem sido escritas no século 18.

O copyright se baseia na idéia de que o texto é uma criação, uma parte do indivíduo, expressão de seus sentimentos, de sua linguagem. A relação entre o texto e a subjetividade, a idéia de que o texto é uma projeção do indivíduo tendo como conseqüência econômica a propriedade do texto surge a partir da metade do século 18. O problema da circulação textual em forma eletrônica, quando não há formas de se fechar o texto, é que ela criou dificuldades para os direitos de propriedade literária. Cada texto pode ser alterado pelo leitor e enviado pela internet. Essa maleabilidade do texto na forma eletrônica tornou difícil proteger o direito de propriedade literária.

Foucault apresentou na sua conferência inaugural do Collège de France a idéia de um mundo textual sem apropriações, sem nome, feito de ondas textuais que se sucediam, onde cada um poderia escrever suas palavras em um discurso já existente. Era um paradoxo, porque ele apresentava seu sonho de uma textualidade coletiva, indefinida, a partir da posição mais individualizada, a mais prestigiosa da universidade francesa. De certa forma a internet permite aos autores que realizem esse sonho à medida que deixa o texto aberto às escritas, apropriações e alterações. Mas há aqueles fiéis ao século 18 que reivindicam a propriedade literária e a identidade da autoria.

Um tema que vem sendo discutido nos EUA é a forma de impedir que o texto seja transformado, copiado ou impresso. Trata-se de uma questão complicada porque a única maneira de solucioná-la é fechando os textos. E isto é um paradoxo, pois a invenção da internet deu-se justamente para facilitar o acesso aos textos.

Este foi o problema dos e-books, um texto pelo qual se pagava, mas que não se podia alterar, copiar ou imprimir. Protegia os direitos do editor ou do autor, mas não fez sucesso porque o que torna essa nova tecnologia textual tão atraente é justamente a liberdade, a mobilidade. Todas as invenções que vêm no sentido de constranger essa liberdade são consideradas violências contra as novas tecnologias.

A mesma discussão acontece no meio das publicações científicas. Há revistas eletrônicas que querem proibir o acesso gratuito e a possibilidade de cópia dos artigos publicados. E há comunidades investigadoras que afirmam, à maneira de Condorcet no século 18, que o saber é algo que não pode ser apropriado, pois é útil para o progresso da humanidade.

Algumas comunidades investigadoras na área de biologia, por exemplo, tentam criar uma forma de difusão dos resultados fora do controle econômico das revistas, cuja assinatura pode chegar a US$ 8 mil ou mesmo a US$ 12 mil. É uma questão que ainda está para ser resolvida: a internet como uma textualidade livre e móvel ou como forma de publicação segundo os mesmos critérios jurídicos e estéticos da publicação impressa.


Um controle difícil de obter, pois a indústria fonográfica está perdendo essa guerra…

Chartier: Mas a diferença é que a estrutura do livro impresso impõe o texto ao leitor sem que ele possa modificá-lo. Mesmo que se escreva nas páginas em branco, há o reconhecimento da autoria e que isto implica em direitos econômicos e morais. Mas o texto eletrônico é um texto aberto, no qual é possível interferir. É uma grande diferença.

A outra grande diferença é que no mundo do texto impresso há uma correspondência entre o tipo de publicação e o tipo de textos que se publica nela. Uma revista não é um jornal, que não é um livro, que não é um documento oficial, que não é uma carta. Há uma hierarquia de objetos que correspondem a uma diferenciação na taxonomia do texto. O computador quebra isso.

A partir do momento em que o mesmo aparato, na mesma forma, dá a ler todos os tipos de discursos em termos de gênero, da carta ao livro, ou em termos de autoridade, é mais difícil para o leitor que não está preparado fazer a diferenciação imediata -que está muito mais evidente no material impresso.

Uma vez que todos os gêneros de textos, desde os mais íntimos aos mais públicos, se dão a ler de uma forma quase idêntica sobre o mesmo aparato, há uma ruptura muito grande na maneira de entrar ou de conceber ou de manejar o mundo dos textos. Para o melhor ou para o pior.

Para o melhor, porque permite esta proximidade entre os textos, porque há uma circulação textual que não é simplesmente a mobilidade de cada texto separadamente, senão a mobilidade textual, que seria uma forma de invenção e renovação. Para o pior, quando pensamos nos que negam a existência das câmaras de gás.

Se alguém busca informações sobre o Holocausto no mundo da cultura impressa ou se, ao fazer um trabalho para a escola, consulta enciclopédias, livros de história, revistas reconhecidas, não terá tanto contato com a propaganda dos negacionistas, que é totalmente marginalizada. Em muitos países ela está proibida ou só existe em revistas que não se encontram facilmente. Assim, as informações sobre o Holocausto serão obtidas em textos mais ou menos controlados.

Um jornalista fez a mesma investigação sobre o Holocausto na internet e encontrou uma enorme quantidade da propaganda negacionista, revisionista, apresentada com todas a aparência de texto científico. Se o leitor não está preparado para estabelecer a diferença que já foi estabelecida na cultura impressa por meio do formato editorial ou das comunidades cientificas, há um risco de confusão entre o que é informação e o que é saber. É informação conhecer toda essa propaganda revisionista, mas não é saber. É o contrário do saber, é a falsificação da verdade.


A grande dificuldade é como controlar, como estabelecer critérios para isto. Quem vai estabelecer?

Chartier: Voltamos ao nosso primeiro tema de discussão. Não se trata de censura, mas de como reconhecer a autoridade científica. Não autoridade no sentido canônico, e sim a autoridade que se afirma através da evidência, da prova. Os textos que descrevem uma realidade histórica não têm autoridade científica equivalente. É através disto que podemos reconhecer a diferença entre um texto dos revisionistas que inventaram que as câmaras de gás nunca existiram, que nunca aconteceu o massacre de milhões de judeus, e um texto de um historiador que se pode encontrar em uma enciclopédia, em livros de divulgação e que estabeleceu uma percepção adequada do acontecimento.

O que digo é que este diferencial de credibilidade científica era estabelecido no mundo impresso a partir das diferenciações editoriais entre os tipos de publicações e as formas do discurso. A gente podia dar mais crédito a um livro publicado por uma editora reconhecida por sua exigência que a um artigo de periódico ou a uma carta privada. Essa operação não é impossível com o texto eletrônico. Ela se tornou mais difícil.


Talvez porque credibilidade é uma coisa que se conquista com o tempo. É como o prestígio de algumas universidades e o descrédito de outras. Dentro da internet ainda não houve tempo para criar portais em que o usuário possa dizer com toda convicção: neste eu posso confiar.

Chartier: De fato, é preciso dar aos usuários da internet instrumentos críticos para entender como os textos foram construídos, para avaliar o grau de seriedade de cada local. Não podemos minimizar o significado da ruptura de um mundo onde objetos e textos estão vinculados através de materialidades múltiplas com um mundo em que a mesma superfície iluminada do monitor dá a ler todos os gêneros textuais. A reflexão sobre essas transformações muda a percepção dos textos e de suas diferenças.

Há uma descontinuidade com a leitura com que estávamos familiarizados e isto implica na transformação da relação fundamental com algo que continua a ser um texto, mesmo que em diferentes formas. A leitura eletrônica é uma leitura da fragmentação, dos extratos de livro, sem que se saiba nada sobre a totalidade da qual se extraiu aquele fragmento, pois o fragmento eletrônico não mantém nenhuma ligação com o texto que garantia o conhecimento da totalidade. O problema é saber se a internet pode superar a tendência à fragmentação.


Você já orientou muitos brasileiros. Ao longo desse tempo você leu muito sobre o Brasil nas teses desses orientandos. A partir dessas leituras como você vê o Brasil?

Chartier: Acho que há aqui uma circulação entre os campos disciplinares da antropologia, da história e da sociologia cultural mais forte que em outros lugares. O campo da educação, por exemplo, que em muitos países é muito especializado, aqui me parece estar bastante integrado ao mundo das ciências sociais. A maior parte dos trabalhos que orientei tratam de uma forma ou de outra do mundo das práticas culturais, da história da publicação e da circulação dos textos e um pouco também do mundo social, da história da vida privada, das estruturas sociais do Brasil colônia.

Há uma vitalidade impressionante nesse tipo de investigação. O problema é que na Europa ou nos Estados Unidos existe uma total falta de interesse por outros territórios. Todo mundo está muito preso a seu próprio campo de investigação e não se dá conta de que é possível aprender muito com estudos sobre temas que não são os seus. Isso impede que circulem numerosos trabalhos que mereceriam ter um reconhecimento mais forte.

Para divulgar esses trabalhos que têm uma força metodológica ou teórica inspiradora, seria preciso fazer com que editoras norte-americanas traduzissem obras latino-americanas para o público que não lê em espanhol. Pode-se perceber nas referências bibliográficas de trabalhos realizados na Europa e nos EUA que muitas obras latino-americanas não estão em inglês, salvo trabalhos de autores americanos e ingleses sobre o Brasil.


Tradução de Ana Carolina Delmas




Isabel Lustosa
É cientista política, pesquisadora da Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, e autora de "Insultos Impressos – A Guerra dos Jornalistas na Independência" (Companhia das Letras, 2000).
www.uol.com.br/tropico

sexta-feira, 1 de maio de 2009

ACERCA DE LA POSIBILIDAD DE FUNDAMENTO EN LO HISTORICO

Teresa Bianculli1
Escuela de Historia. Universidad de Los Andes, Mérida-Venezuela
tebianculli@yahoo.com
La comprensión cotidiana, incluso académica, respecto a la historia como transcurrir de sucesos, puede que ya no sea el concepto cimero de una ciencia establecida, sino el piso infirme de una nueva investigación sobre el ser de “lo que se gesta”, el ser de lo histórico. Una investigación así pensada permite vislumbrar la perspectiva desconcertante de que la condición histórica no radique en sucesos ni procesos, ni siquiera en el “mundo” historiado, sino que sea, por el contrario, una determinación de nuestro ser que nos constriñe a ser de un todo, como tradición y porvenir en la responsabilidad asumida y compartida de un destino común. En ese sentido, el estudio de los términos Historicidad y Temporalidad nos acerca a la tarea de fundamentar la disciplina histórica en constitutivos esenciantes, -del ser- del hombre y no en los sucesos, entendiendo por hombre el ente que somos nosotros mismos, cuya peculiaridad de ser radica, precisamente en tener una comprensión histórica Del ser en general, de lo que es y de su propio ser, como presente.
Palabras clave: Gestación. Tradición. Destino. Comprensión de Ser. Historicidad. Temporalidad.


Introducción
Acerca de la posibilidad de fundamento en lo histórico2 , más que un título sugerente o necio, quiere referir a una investigación sobre lo que llamamos el “ser” de la historia, investigación que se orienta por la pregunta ¿qué es lo histórico? En estos recorridos, no por mucho andar se llega pronto ni directo a las repuestas, pues “la Historia”, dicha en abstracto como mero substantivo, no nos resulta precisamente cercana. Por el contrario, nos movemos sin conmovernos en la proximidad de situaciones, exigencias, métodos y personajes, adjetivados como históricos, "datos" éstos que conforman el cúmulo de asuntos sobre los que disertamos en nuestros trabajos, pero que aún así no nos conciernen en propiedad ni nos preceden en gesta alguna. Lo que además nos causa perplejidad es que usamos esta denominación sin saber muy bien lo que entendemos por histórico. No sabemos nunca cuándo adjetivamos bien o cuándo erramos en el calificativo. Desconocemos, pues, la causa, la “cosa”, la fuente de donde proviene esa cualificación, el "eidos" de lo histórico.

¿Qué entendemos por Historia?
La palabra historia tiene entre nosotros un sentido académico que se extiende a um conjunto de saberes y a sus procedimientos de búsqueda. Pero en un nivel coloquial, no menos legítimo, le damos ese nombre a todo relato de acontecimientos, secuenciados en tiempo y espacio, que aluda a asuntos personales, privados o públicos, presentes o pasados. La incumbencia de lo histórico, en este primer respecto de lo teorético y lo coloquial, afecta a todo lo que muestra la apariencia de um transcurrir vivenciado por un alguien individual o social, quien relata o quien oficia.
Por encima de esos dos niveles de la historia como secuencia de hechos datados, emerge -pues subsiste- la ignorancia acerca del qué mismo de “lo histórico”. Esa es la ocasión de preguntarse por el fundamento de esta disciplina, por su posibilidad, indagar cómo es posible que haya historia, qué podemos o queremos “conocer” por ese camino, qué nos compele a hacerlo y tan imperativamente.

¿Cómo opera el obrar histórico?
Para abrir el acceso a las interrogantes que nos acosan en relación a la disciplina histórica, intentaremos acercaremos al modo en que opera. Vemos que así como um carácter cualquiera, la densidad, p.ej., o la antigüedad -de algo-, se convierte em posible objeto de ciencia -o de tratamiento científico- sólo en tanto puede ser medido, establecido y fijado como magnitud, y a efecto de su manipulación técnica; así también, hay caracteres, como la condición humana, que no son cuantificables ni objetivables. A diferencia, por ej., de "lo" biológico, "lo" humano, es decir, el ser de lo humano, no se puede fijar o medir ni generalizar, y tampoco se presta a ser objeto de operaciones técnicas. Así, los asuntos humanos constituyen todo aquello cuya propiedad permanece y se mantiene en su ser, pero mediante cambios en um transcurrir. Esto es lo que cae bajo la apelación de lo histórico. Lo asuntos humanos se observan y califican de tales en cuanto participan de este carácter a la vez mutante y permanente, exentos en cuanto tales de manipulación, predicción y de universalidad, parámetros operativos de la actividad científica.
La historia como relato o como disciplina de conocimientos versa, pues, sobre um cierto transcurrir, el gestarse humano, y opera, sin embargo, como los quehaceres intelectuales que se manejan con lo estable y permanente, caracteres que pueden fijarse y medirse con fines de cálculo e inventario, fines con que manejamos nuestros asuntos cotidianos. La disciplina de la historia analiza, es decir, separa, cuantifica y tabula aquellos caracteres sobre los que descansa su cualidad de ciencia. Significa que ella trabaja sobre la posibilidad de universalizar, de hacer leyes y de manejarse con datos -con los hechos históricos- obtenidos en condiciones de supuesta asepsia intelectual y emocional, es decir, sin azar, sin dudas y sin pre-juicios, y sin involucrarse con su "objeto de estudio". Según esto, la historia opera objetiva y positivamente, y ésa es su intención al tenerse por ciencia. Tendríamos que considerar si pudiera tener otra posibilidad operativa. Pero de la historia, en tanto ella misma, seguimos sin conocer nada y, después de todo lo dicho, tal vez nos hemos quedado sin siquiera una opinión.
El título de estas páginas, acerca del fundamento.., va precisándose hacia lo que queremos hacer notar como aquello desconocido por nosotros pero presentido, tal vez olvidado y evidentemente no cuestionado, en relación a lo que llamamos historia y a lo que permite que haya algo así como la historia, en vez de que no haya. La pregunta por “el ser” de la historia nosotros la formulamos como la pregunta por el fundamento de lo histórico, de donde deviene su carácter de pregunta fundamental. Esta pregunta indaga por las condiciones en las cuales es posible que algo sea histórico o que no lo sea, es por tanto una pregunta por las "condiciones de posibilidad de la historia", y pertenece al modo de cuestionar de la, llamada por Aristóteles en su Metafísica, ontología fundamental o filosofía primera.

El fundamento de lo histórico
¿Dónde residiría entonces el “lugar” de lo histórico? Debemos considerar si hay asuntos históricos en sí mismos o si es ésa una cualificación con la que el hombre dispone un cierto ámbito de “lo que es”, las cosas. De ser así habría que indagar a partir de cual carácter suyo lo dispone: si en tanto que creado y ataviado de razonamiento lógico o en cuanto dotado ya de una constitución comprensiva de carácter histórico y temporal, acerca del ser en general y de su propio ser. Las ciencias que investigan “el hombre” strictu sensu, tal vez tendrían que preguntarse por las condiciones que en el hombre mismo posibilitan que haya “dominios” de cosas, que sea desde él, desde el hombre, que se abran o cierren “mundos”, en vez de creer que existan mundos fuera para descubrir. ¿Por qué hay historia? ¿Podría no haber? ¿Fue un azar de Occidente? Tendríamos que reconocer que hay concepción histórica incluso en las épocas y civilizaciones que no han hecho ciencia de ella, que no han producido historiografía.

¿Cuál lenguaje daría razón de esta búsqueda?
No parece ser cuestión de simple ratio, idioma, logos o palabra, eso desde donde se nombra el ser. Las nociones de transcurso y permanencia, con las que opera el quehacer histórico, nos ponen en la idea de movimiento y con ella en la de sucesión y simultaneidad, términos que nos llevan a la noción de tiempo-espacio, en las que entroncan. Estos términos, sobre todo el tiempo, acotan no sólo la “región” de los entes considerados históricos en modo propio o impropio, sino toda la región del ser del hombre, determinando las relaciones que establecemos, o que están establecidas ya con los demás, con las cosas y el mundo, y determinando también las llamadas relaciones de conocimiento. Es el sentido del tiempo, y no el concepto -que se elabora a posteriori-, lo que determina esa posibilidad de ser en la relación con otros y con los demás entes, comprendiéndolos en tanto algo presente o cercano, ausente o lejano; de aquí que podamos decir que “comprendemos” el ser en perspectiva temporal.
La temporalidad que afecta al ser del hombre es diferente de la que afecta a los demas cosas pasajeras, los objetos históricos, y no es sólo la del ser presente pasado y futuro. Ella es por el contrario de carácter complejo y peculiar, temporalidad es en el hombre su carácter histórico.
La investigación sobre la historia, sobre su fundamento, nos retrotrae a la investigación sobre el hombre en tanto aquél que es en la posibilidad de um despliegue historiográfico en razón de que posee una comprensión inmediata de El mismo como presente, futuro y pasado.
Pero ese hombre, de ordinario y por lo general, no se toma por la fuente y origen de todo saber de algo como algo. Ese hombre, que por su peculiaridad constituva tiene la posibilidad de “hacer” Historia o música, o de filosofar preguntando por el asunto del “ser”, se comprende en modo inmediato como “algo” diferente de él mismo3, algo que es siendo dentro de un lapso finito marcado por extremos inasibles, apenas evocados con palabras de uso corriente. Así, llama pasado a lo que considera tiempo “gastado”, se mira a sí mismo desde la espera de un futuro incierto, creyendo que sólo es real su ahora, el de los asuntos y afanes, lo que se le presenta, aquello con que en “la práctica” tiene que lidiar. Sólo esto es su presente, el de la sucesión de los “ahoras” desconectados, que dentro de poco serán su pasado, porque los ahoras “pasarán”, y seguirán otros, vendrá el futuro, lo por-venir. Así, de modo tan simple, se comprende como algo “en el tiempo”, tal cual son en el tiempo las demás cosas que sólo nacen y perecen, sin distinguirse en su peculiaridad temporal, óntica. Sin darse cuenta de que su tiempo no es mero transcurrir ni sucesión, sino historia.

Temporalidad e Historicidad: a priori del ser
El hombre, dice Martin Heidegger, un filósofo alemán (1889-1976)4, posee un carácter distintivo entre los entes, él es en una comprensión [Verstehen] inmediata sobre el ser, no intelectual, sino previa a todo preguntar, a todo juzgar o decidir, a todo sentimiento o preferencia. Esa comprensión no es saber, propiamente, ni conocimiento, es manejo inmediato de un asunto que a todo hombre siempre “le va” y le incumbe, ser. Al contrario del carácter previo o inmediato de esa comprensión sobre el asunto de ser, la reflexión sobre el ser es siempre posterior. Antes de toda reflexión o en ausencia total de cuestionamiento, al hombre le toca resolver su próprio ser, llevarlo a cabo, concluirse. Entre todas las “cosas”, “criaturas” o “entes” que comparten la condición de ser, sólo el hombre está compelido a ser; él “tiene que ser” en el “mundo“ que le toca, su época y su lengua madre, en su “historia”, finalmente. La “comprensión” sobre el ser que tenemos que ser y sobre el “ser” em general es de carácter histórico, pues lo que el hombre sabe, en primer lugar y sin ciencia alguna que se lo enseñe, es acerca de su pertenencia a una anterioridad de ser. Nos sabemos “puestos” siendo en algo que ya era antes, y sin haberlo solicitado expresamente. El hombre es ya en una tradición que le suministra incluso lãs posibilidades reales y formales de su preguntar, y no sólo eso, también las posibles respuestas. La reflexión, en general y la reflexión sobre el tiempo y sobre el ser, es siempre posterior. Antes de toda reflexión o en ausencia de cuestionamiento, al hombre le toca resolver su propio ser, llevarlo a cabo, concluirse, y todo este obrar sub-pone “tiempo”, un cálculo de tiempo.
Las nociones de Temporalidad [Zeitlichkeit] e Historicidad [Geschichtlichkei] pertenecen a una “analítica” desarrollada por un filósofo alemán, Martin Heidegger dentro de la perspectiva que le ofrece la tradición filosófica de Occidente en relación a la concepción del ser y el tiempo expresada desde Parménides, Platón, Aristóteles y San Agustín, hasta Kant y Hegel. Con ellas Heidegger pretende mostrar el fundamento de la posibilidad que somos de manejarnos con algo así como el “tiempo”, de “comprendernos” tiempo, en modo diferente a la comprensión que posibilita el cálculo efectivo de los “ahoras”.
En la analítica heideggeriana, temporalidad e historicidad, no son conceptos abstraídos de fenómenos históricos o temporales, ellos refieren constitutivos existenciales de carácter apriorístico, y son previos a toda reflexión o toma de conciencia Estos términos determinan toda posibilidad de “ser”, porque disponen com anterioridad no temporal, sino fundamental, la posible conceptualización y objetivación de “lo que es”, en tanto que presencia, el "esto aquí" aristotélico. Em efecto, tiempo -y espacio- son los modos básicos primordiales en que cualquier algo puede ser expresado5, tal como lo muestran los juicios de la razón6, inventariados em sus modalidades por la lógica tradicional, desde Aristóteles, y expuestos en su originariedad trascendental por la “crítica” kantiana7.
El término Historicidad, nombra “el acaecer del ser”8, lo cual sólo es posible en el ente que ya “sabe” del ser. Este acaecer [Ereignis] es algo más que un acontecimiento fortuito. Tiene que ver con que eso que llamamos “lo humano”, que se gesta en cada decisión de cada uno, que viene ya dispuesta como posible para nosotros por la interpretación tradicional acerca de lo que toda una generación o época entienda por “ser”. Esa interpretación heredada está expresada en los conceptos del lenguaje común, en los modos “históricos” de ser pueblo o nación.
Temporalidad refiere una condición a priori que determina toda posibilidad de comprenderse en general como algo presente o no presente, como algo “en el tiempo”. En el carácter de presencia se sostiene la posibilidad de nombrar todo algo en cuanto algo, así, decimos “esto es”, si está presente, o “no es”, si no está presente, como si el ser fuese "algo" que aparece y se oculta, que viene y va de la presencia a la ausencia.
Para la conciencia ordinaria, la que somos normalmente en nuestro diario hacer y decir, los modos posibles de “ser” son tres, en primer lugar el de lo ya sucedido o transcurrido, lo ya no presente o “sido”. En segundo lugar, el de lo que aún no ES presente, pero se espera que sea y, por último, el modo de lo que ya es, el presente. Las palabras presente, pasado y futuro, antes, ahora y después, son referencias temporales, mas no son el tiempo mismo. ¿Qué refieren, si no? Refieren una instancia temporal, pero no podría ser la expresada en el concepto de tiempo vulgar o científico. Desde esa instancia tampoco podría hablarse de un tiempo “fuera” o dentro.
“Ser" es siempre y en primer lugar una cuestión de tener que ser [Zu-sein] nosotros mismos. La posibilidad de la historia y de la respuesta a la pregunta por su ser radica en este fenómeno cotidiano del ocuparse con las cosas, con el mundo, con nosotro mismos y los otros hombres; también supone el modo como nos lo disponemos. Em efecto, el hombre opera en todos sus cálculos sobre coordenadas de espacio y tiempo que son constitutivos de su posibilidad comprensiva9, y no conceptos ni objetos fuera de él. Ser hombre es estar siempre en “situación” de ser. El cotidiano ocuparse se organiza sobre la base de tener tiempo o de no tenerlo y desde la comprensión de toda situación como “ahora” efímero. “Ser” supone organizarse para ser, y en esa perspectiva, ser es “contar con” el tiempo.
La posibilidad de toda historia [Geschichtlichkeit] y de la disciplina que la elabore [Historie]10 no radica, entonces, en los sucesos, no en modo primordial, así como tampoco en la correcta o incorrecta apreciación metodológica o ideológica de um sujeto científico. Tampoco en la novedad o antigüedad de un objeto de estudio, sino en aquella comprensión de ser, posible y de hecho, sólo en una cierta co-pertenencia con los otros en un “mundo” compartido como herencia y legado, esto es, como destino. Una pertinencia tal y tan imbricadamente “humana” no admite quedar “por fuera”, permanecer ajenos al acaecer. La “historia” no es algo que sucede desde lejos y desde otros para nosotros aquí. La pertinencia es esencial y esenciante, por tanto implica y dispone responsabilidad y autoría en todo aquello que, con descuido decimos que “sucede”.
Las nociones heideggerianas de temporaliad e historicidad están expuestas como el fundamento de toda posible comprensión del ser, de todo posible cuestionar y conocer humanos. En tanto fundamento, ellas rebasan la condición apriorística Del razonar y abren la perspectiva existencial respecto al tiempo, en la que descansa a posibilidad, no sólo de toda historia vivida, contada o escrita, y de toda ciencia, sino de todo poder-ser. De ese modo se nos descubre que no hay suceso ninguno que pueda marcar la pauta de lo que somos, más que aquél en el que optamos por “ser” nosotros mismos. Esa decisión inaugura el tiempo para mí, tiempo que se distancia del que fijan la cronología y los acuerdos operativos. Mi tiempo es así el “ahora” propio, ese “ahí” [Da]11, en el que nos reiteramos, siendo el ser que somos como historia cumplida en nosotros mismos, autores de nuestro propio acaecer. El tiempo propio ya no es más el ahora común, sino el que mi elección despeja como mío. Mi asunto es ese presente que Heidegger llama instante [Augenblick], el de la decisión respecto de mí mismo en relación a la situación presente, pero en fidelidad AL histórico ser que somos, o en su desacato.
La Historicidad, como carácter del ente que se comprende siendo tiempo y desde la cotidianidad imperativa de una existencia no escogida, supone la comprensión del ser como destino con otros. No hay en esta perspectiva la posibilidad de un sujeto histórico responsable y puro, rodeado de otros que no lo son. Por otra parte, y en tales condiciones, ni la responsabilidad lleva a error ni el error será pecado. Por el contrario, comprenderse destino común y asumirse en la co-pertenencia histórica, despeja la posibilidad antes negada de la rectificación. Esa comprensión permite corregir la decisión de ser, que viene dirigida por el anónimo y ambiguo modo público común, y encararla como tarea propia de clarificación de los supuestos y prejuicios del pensar y del actuar, y aunque sólo sea para emprender un camino lleno de oscuridad y sin respuestas, perplejamente aporético, y que, además, permanece cegado a todo trato anónimo o anodino.
Si lo histórico es tal comunidad y tal destino, ese destino común no es, sin embargo gregario, pero tampoco mesiánico. Debe ser abierto cada vez por cada uno en el reconocimiento de un pasado común, y esto siempre querrá decir de unas tareas comunes, en relación con develar los supuestos de la propia tradición. La tarea [die Aufgabe] es conjunta, pero la toma de conciencia al respecto es, necesariamente individual. En esa doble condición radica la posibilidad de toda historia posible, es decir, de una historia en verdad propia.


1-Historiadora, Magister Scientiae Filosofía ULA, 2002. Prof. Asociado Escuela de Historia ULA. Miembro fundador del GRHIAL, Grupo para la investigación sobre Historia de lãs Ideas en América Latina. Publicaciones recientes “Procedencia originaria de América em Europa: principios y métodos de una transmisión histórica”, en Presente y Pasado. Revista de Historia. Escuela de Historia. ULA. Año VII, No 15, Enero-Junio 2003. Pp 96-119. “Historia y criterio de verdad en Occidente”, en Presente y Pasado. Revista de Historia. Escuela de Historia. ULA. Año IV No 7, Enero-Junio 1999. pp. 197-203. “Historia, lenguaje y tradición”, en Filosofía. Revista del Postgrado de Filosofía ULA. No 11, año 1999.
2-Este trabajo ha sido elaborado a partir de notas con las que preparo una investigación sobre los caracteres de tiempo e historia, desde la exposición que hace Heidegger en su obra de fundamento Ser y Tiempo (1927). La intención que tuvimos al adelantar estas ideas en uma revista de divulgación de temas históricos es propiciar el acercamiento al trabajo de un autor, que creemos pueda abrir posibilidades inéditas para el oficio de la disciplina en lo que concierne a la formación del historiador y la perspectiva del oficio, vistos a través de uma radicalización de los conceptos con los que opera la disciplina, tiempo y espacio, tal como los trata la reflexión filosófica.
3-Inmediato: sin mediación conceptual.
4-Véase Ser y Tiempo (1927). Santiago de Chile, Editorial Universitaria, 1998. Traducción Jorge Eduardo Rivera. (1ª edic. español.1951, México, FCE, trad. José Gaos). Ésta es su obra de fundamento donde se exponen los resultados cruciales de las investigaciones sobre tales cuestiones, el ser y el tiempo.
5-Todo cálculo de espacio se realiza en base al cómputo de la sucesión, por adición de unidades, de segmentos, líneas o puntos.
6-Esto es, según la lógica con que se construyen los conceptos y todo juicio sintético.
7-Véase Emmanuel Kant. Crítica de la Razón Pura. (1781-1787). Madrid, Alfaguara. 1983. Traducción Pedro Ribas.
8-Véase Conceptos fundamentales(1941). Madrid, Alianza Editorial, 1989 .Traducción Jiménez Redondo.
9-Véase Kant, Op. Cit., el capítulo Estética Trascendental.
10-Heidegger usa las dos palabras que tiene la lengua alemana para cada una de estas expresiones: Geschichtlichkeit para historia como gesta cumplida, destino histórico, e Historie que refiere a la historia reseñada o historiografía.
11-“Ahí” en el original alemán. Todas las palabras entre corchetes son de la lengua alemana, tomadas de la traducción de Rivera de Syt.