terça-feira, 20 de outubro de 2009

OS DESAFIOS TEÓRICOS DA HISTÓRIA E A LITERATURA

A proposta deste artigo é contribuir para o debate em torno das conexões entre a História e a Literatura no sentido de apontar os desafios teóricos e metodológicos dele decorrentes, estimando o impacto na historiografia ocidental a partir da crise dos paradigmas de interpretação da realidade, ao mesmo tempo em que observamos o ressurgimento da narrativa, exigindo uma resposta de historiadores e literatos neste fim de século.
Carlos Vinícius Costa de Mendonça
Prof. Adjunto do Departamento de História – UFES
Gabriela Santos Alves
Mestranda em Estudos Literários – UFES


O historiador não ajuda ninguém construindo uma refinada continuidade entre o mundo presente e o que procedeu. Ao contrário, necessitamos de uma história que nos eduque a enfrentar descontinuidades mais do que antes; pois a descontinuidade, o dilaceramento e o caos são o nosso dote." Hayden White

As relações entre literatura e história estão no centro do debate da atualidade e apresentam-se no bojo de uma série de constatações relativamente consensuais que caracterizam a nossa contemporaneidade na transição do século XX para o XXI: a crise dos paradigmas de análise da realidade, o fim da crença nas verdades absolutas legitimadoras da ordem social e a interdisciplinaridade.
Bronislaw Baczko pondera que a perplexidade atual das ciências humanas deriva de um sentimento de perda da certeza das normas fundamentadoras de um discurso científico unitário sobre o homem e a sociedade. Na medida em que deixa de ter sentido uma teoria geral de interpretação dos fenômenos sociais, apoiada em idéias e imagens legitimadoras do presente e antecipadoras do futuro (o progresso, o homem, a civilização), ocorre uma segmentação das ciências humanas e um movimento paralelo de associação multidisciplinar em busca de saídas.1
Assim, novos objetos, problemas e sentidos se ensaiam, marcados por um ecletismo teórico, uma ótica interdisciplinar e comparativista e um grande apelo em termos de fascínio temático. Portanto, o diálogo entre história e literatura, enquanto objeto de estudo, é uma saída deste esvaziamento e desta sedução.
A compreensão de que a literatura é, além de um fenômeno estético, uma manifestação cultural, portanto uma possibilidade de registro do movimento que realiza o homem na sua historicidade, seus anseios e suas visões do mundo, tem permitido ao historiador assumi-la como espaço de pesquisa.
Assim, mesmo que os literatos a tenham sempre produzido sem um compromisso com a verdade dos fatos, construindo um mundo singular que se contrapõe ao mundo real, é inegável que, através dos textos artísticos, a imaginação produz imagens, e o leitor, no momento em que, pelo ato de ler, recupera tais imagens, encontra uma outra forma de ler os acontecimentos constitutivos da realidade que motiva a arte literária.2
Revisando os momentos em que os estudos literários abordam sistematicamente a relação entre os textos de ficção e os textos de história, são notáveis os períodos que compreendem os estudos poéticos da Antigüidade, as pesquisas estéticas do Romantismo – século XIX e as novas propostas teóricas gestadas ao longo do século XX, que vieram a se tornar a opção teórica de inúmeros pesquisadores nesse fim de século.
Como se vê, a história da discussão sobre a aproximação ou separação entre literatura e história remonta ao início da teorização da arte ocidental, o que torna necessário retroceder brevemente às idéias de Aristóteles para se entender a construção desses paradigmas antitéticos e suas configurações tanto na teoria literária quanto na historiografia.
O filósofo estabeleceu uma antítese entre história e poesia em sua obra Poética, criando assim obstáculos quase intransponíveis entre as duas.3 Para ele, a poesia encerra mais filosofia, elevação e universalidade, por falar de verdades possíveis ou desejáveis. Por seu turno, a história trataria de verdades particulares, acontecidas, não universais:

(...) não diferem o historiador e o poeta por escreverem verso e prosa (...), diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder. Por isso a poesia é algo de mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta o particular. Por referir-se ao universal entendo eu atribuir a um indivíduo de determinada natureza pensamentos e ações que, por liame de necessidade e verossimilhança, convém a tal natureza; e ao universal, assim entendido, visa a poesia, ainda que dê nomes às suas personagens. Outra não é a finalidade da poesia, embora dê nomes particulares aos indivíduos; o particular é o que Alcibíades fez ou que lhe aconteceu.4

Assim concebidas, arte e história, ficção e verdade, constituíram manifestações opostas da inteligência. Com o avanço do racionalismo nos tempos modernos, tal contraposição seria acentuada, resultando na inversão dos termos apresentados por Aristóteles.
Poesia, arte e ficção seriam progressivamente desqualificadas como modos do conhecimento da realidade, passando a habitar um terreno quase etéreo: lugar de fantasia para o artista ou de metafísica para o intelectual.5
Do outro lado habitariam as ciências dos homens sensatos e progressistas, com suas leis e seus postulados de objetividade, racionalidade ou referencialidade cumprindo funções utilitárias.
Assim, solidificou-se a separação entre ficção e verdade, base do divórcio entre a arte e a ciência. As noções de história desde o século XIX, que pretenderam a cientificidade da disciplina, ou as manifestações do realismo e do naturalismo na literatura do mesmo período, tiveram como fundamento essa distinção. Segundo Luiz Costa Lima, aliás, "um verdadeiro veto ao ficcional, um controle do imaginário, decorrente do racionalismo, pôde ser assistido desde meados do século XVIII, atravessando os mais variados discursos, até mesmo os artísticos".6
No entanto, essa mesma separação daria suporte às correntes que, a partir do romantismo, procuraram reafirmar o valor intrínseco e superior da poesia e da literatura ficcional, manifestando uma repulsa à ciência.
A teoria literária, que se constituiu institucionalmente no século XX, ainda que tenha abandonado os ideais românticos ao assumir o pendor científico, também buscaria assegurar a singularidade do literário e do estético, diante das ciências e das outras linguagens e discursos, como a história.
Desse modo, a concepção aristotélica seria, mais uma vez, retomada para demarcar posições. A literatura, nessa perspectiva, exprimiria o verossímil (a impressão de verdade, não necessariamente falsa, que se inclui no espaço ficcional), enquanto a história pretenderia o verdadeiro (no sentido da representação do acontecimento particular).7
Assim, a teoria instituída no século XIX conseguiu assegurar até algumas décadas do século XX a noção de que literatura e história são campos distintos, indicando que, enquanto um ficcionaliza o real, o outro o estabelece. Baseada nessa visão, a história autodenominou-se a única possibilidade de registro da realidade do passado, não reconhecendo essa capacidade na literatura.
Essa teorização, contudo, ao propor a separação dessas formas de conhecimento, ignorou as produções ficcionais e históricas de sua época, o que fortificou a contestação a essa conceituação por parte da teoria e da arte pós-moderna.
Nesse processo, foram fundamentais os questionamentos a respeito do próprio estatuto da história e as tentativas de compreender o papel social do historiador. O processo de produção do texto histórico também passou a ser interpretado à luz da experiência literária. Pedro Brum Santos comenta a atitude de muitos estudiosos da escrita histórica, dizendo que eles têm

(...) sugerido que a historiografia deve utilizar-se das variações e criatividades que podem ser constatadas nos diversos níveis da narrativa literária. Desse modo, incorporaria no próprio discurso o caráter inerente relativo a todo conhecimento sobre o passado.8

Dessa reflexão, resultou a ponderação de cientificidade da narrativa histórica e a instauração da idéia de relatividade do conhecimento nela revelado. Essas leituras basearam-se na fragilidade da realidade histórica enquanto produto da subjetividade, a qual é ilimitada e passível de erros. Há, ainda, a interpretação dos fatos dada pelo sujeito historiador, a partir da seleção e organização da realidade que ocorrem numa narrativa histórica.
Desse modo, embora a descrença no discurso científico unitário sobre o homem e a sociedade tenha se agudizado no interior desse quadro da crise dos paradigmas de interpretação do real na transição do século XX para o XXI, o debate sobre a história e suas conexões com os gêneros literários já estava colocado desde a década de setenta do século passado.9
Pautada por uma ótica interdisciplinar, esta linha de reflexão vem acompanhando a propensão de se interrogar as fronteiras de conhecimento que a tradição institucional construiu. Nesse sentido, é fundamental localizar e caracterizar essa polêmica a fim de consubstanciar o meu problema teoricamente.
As proposições de Lawrence Stone, no artigo O ressurgimento da narrativa: reflexões sobre uma velha história de 1979, podem ser consideradas como um marco da polêmica. Stone anunciava um ressurgimento da narrativa na historiografia recente, em conseqüência do declínio da história científica generalizante.

Associando a história narrativa aos trabalhos dos novos historiadores, o autor enfatizou que tal tendência significaria a atualização de uma tradição que “durante dois séculos encarou a narrativa como modalidade ideal, pois os historiadores sempre contaram estórias.”10

Esse caminho aberto por Stone, o da inclinação hegemônica às ciências sociais para o campo dos estudos literários, exige referências a outros estudos da época que também tentaram demonstrar, cada qual à sua maneira, a filiação da história à literatura.
Assim, uma das contribuições foi dada por Peter Gay em O estilo da história que, realizando um estudo dos estilos de quatro historiadores clássicos – Gibbon, Macaulay, Ranke e Burckhardt – indagou sobre a natureza do próprio conhecimento histórico: ciência ou arte, verdade ou ficção? Concluindo, sobre a natureza dual da história: ciência e arte simultaneamente.11
Num ensaio precursor da epistemologia da história, Paul Veyne em Como se escreve a História, reafirmou a propensão da história à narrativa e à literatura, sugerindo que o historiador, no seu ofício, agiria como o literato, tomado pela trama e pelo enredo urdido subjetivamente.12
Ainda conforme a exposição de Veyne, o historiador deve se apropriar da noção de intriga, elaborada pela ficção, recurso que possibilitará uma compreensão aberta do real. É o narrador, através de sua intriga, que faz emergir do esquecimento a matéria desordenada de acontecimentos do real, pois atribui sentido aos fatos.
Assim, ao escolher os fatos que merecerão destaque na construção de suas tramas, o historiador não deixa de inventar, à sua maneira. Se tal visão literária da narrativa histórica pode ser interpretada como uma veleidade do historiador, não custa recorrer à autoridade de um consagrado escritor de romances, José Saramago, para quem

(...) parece legítimo dizer que a História se apresenta como parente próxima da ficção, dado que, ao rarefazer o referencial, procede a omissões, portanto a modificações, estabelecendo assim com os acontecimentos relações que são novas na medida em que incompletas se estabeleceram. È interessante verificar que certas escolas históricas recentes sentiram como que uma espécie de inquietação sobre a legitimidade da História tal qual vinha sendo feita, introduzindo nela, como forma de esconjuro, se me é permitida a palavra, não apenas alguns processos expressivos da ficção, mas da própria poesia. Lendo esses historiadores, temos a impressão de estar perante um romancista da História, não no incorreto sentido da História romanceada, mas como o resultado duma insatisfação tão profunda que, para resolver-se, tivesse de abrir-se à imaginação.13

É interessante notar que tal observação procede de um escritor de ficção, e ainda mais, um dos criadores daquilo que se convencionou chamar romance histórico contemporâneo, o que permite reforçar os laços de vizinhança entre história e literatura.
Retomando a discussão a partir do significado da narrativa e assumindo que um mundo exibido por uma obra ficcional é sempre um mundo temporal, Paul Ricoeur afirma que "o tempo torna-se tempo humano na medida em que está articulado de modo narrativo; em compensação, a narrativa é significativa na medida em que esboça os traços da experiência temporal."14

Dessa maneira concebidas, historiografia e narrativa de ficção são formas de conhecimento do mundo, em sua temporalidade, o que levaria a contestar tanto as noções puramente estéticas da literatura quanto a idéia da escrita da história como discurso científico de natureza oposta à narrativa.
Ainda levando em consideração o aspecto tempo, tanto para o acontecimento quanto como para seu relato, Benedito Nunes, rastreando o pensamento de Ricoeur, argumenta que

(...) narrar é contar uma história, e contar uma história é desenrolar a experiência humana do tempo. A narrativa ficcional pode fazê-lo alterando o tempo cronológico por intermédio das variações imaginativas que a estrutura auto-reflexiva de seu discurso lhe possibilita, dada a diferença entre o plano do enunciado e o plano da enunciação. A narrativa histórica desenrola-o por força da mímeses, em que implica a elaboração do tempo histórico, ligando o tempo natural ao cronológico.15

Com a proposta de refletir sobre literatura na perspectiva da história social, Sidney Chalhoub e Leonardo Pereira assumem a proposta de historicizar a obra literária – seja ela romance, conto, poesia ou crônica –, inserindo-a no movimento da sociedade, investigando suas redes de interlocução social, destrinchando não a sua suposta autonomia em relação à sociedade, mas sim a forma como constrói ou representa a sua relação com a realidade social.16
A partir da análise de obras de Machado de Assis, José de Alencar, Mário de Andrade e Jorge Amado, entre outros, o livro organizado pelos autores citados argumenta que a obra literária é uma evidência histórica objetivamente determinada, ou seja, situada no processo histórico; necessita, portanto, ser adequadamente interrogada a partir de suas propriedades específicas:

Em suma, é preciso desnudar o rei, tomar a literatura sem reverências, sem reducionismos estéticos, dessacralizá-la, submetê-la ao interrogatório sistemático que é uma obrigação do nosso ofício. Para historiadores a literatura é, enfim, testemunho histórico.17

Indagando a historiografia do ângulo da lingüística, Roland Barthes em O rumor da língua, interrogou sobre o real dos fatos no discurso histórico, considerando que ele próprio possuiu uma existência lingüística: é signo e discurso. Para o autor, diferentemente da literatura ficcional, a história fingiu ignorar o imaginário e a ideologia do eu narrador na reconstrução da interpretação dos fatos históricos.18
Ainda segundo Barthes, a história deve ser vista, se não como ficção, pelo menos como discurso: "essa narração [a história] difere realmente, por algum traço específico, por uma pertinência indubitável, da narração imaginária, tal como se pode encontrar na epopéia, no romance, no drama?"19, indaga o semiólogo. Seu estudo das características fundadoras do discurso histórico responde que, do ponto de vista da estrutura, ambas as narrativas compartilham de diversas características.
Para Roberto Corrêa dos Santos, a distinção entre história e literatura já não mais se pode dar em função do valor e do privilégio da primeira estar com a verdade pois esta, como já ensinava Foucault, não está localizada em um ponto tal que se possa segurá-la, ela jamais é fixa. Santos ainda afirma que

(...) nessa perspectiva, há a desconfiança sobre a história enquanto campo de uma organização factual, de totalidade empírica, na qual se localizaria a verdade tal qual se acreditou existir, una e reconhecível, apesar de suas encenações várias. O pensar história como literatura situa-se no projeto, também histórico, de se descontruir as garantias e as certezas dos métodos e análise dirigidos pela força da tradição, pela busca da origem, pela concepção de legado, pela credibilidade na influência e na autoria.20

Nesse sentido, estas questões seriam enfrentadas, como em nenhuma outra obra, por Hayden White – Meta-história: a imaginação histórica no século XIX, na qual concentrou-se na análise formalista dos historiadores oitocentistas Michelet, Ranke, Tocqueville e Burckhardt, bem como dos filósofos da história Marx, Nietzsche e Croce, para elaborar sua tese fundamental: a atividade do historiador seria ao mesmo tempo poética, científica e filosófica, incorporando em sua narrativa argumentativa modelos de análises literários, como ele próprio fez com as obras daqueles pensadores citados, destacando seus enredos (romance, comédia, tragédia e sátira), seus tropos retóricos (metáfora, metonímia, sinédoque e ironia) e relacionando-os a modos de explicação e atitudes políticas.21
No artigo intitulado O texto histórico como artefato literário, White resume bem suas posições, afirmando que

(...) tem havido uma relutância em considerar as narrativas históricas como o que elas mais manifestamente são: ficções verbais, cujos conteúdos são tão inventados como descobertos, e cujas formas têm mais em comum com suas contrapartidas na literatura que na ciência.22

Mas isto não equivale para ele a tomar a ficção verbal da história como discurso destituído de valor; ao contrário, significa admitir que toda forma de conhecimento contém elementos de imaginação e ficção, que a poesia não é seu elemento oposto.
Também presente em Trópicos do Discurso, talvez o ensaio mais desafiador de White, O fardo da história questiona a concepção científica da história seguindo um insight nietzchiano. De acordo com ele, a dessemelhança radical entre arte e ciência resultou de um mal-entendido promovido pelo medo que o artista romântico tinha da ciência e de um desdém que o cientista positivista votava à arte romântica.23
Argumenta ainda que, por oposição à cultura historicizada ocidental e burguesa, ao pesadelo e ao fardo da consciência histórica na modernidade, as artes atuaram como uma força libertadora ao afirmarem a contemporaneidade de toda experiência humana significativa (a exemplo de Kafka, Proust ou Virginia Woolf).
Conclamando os historiadores a experimentarem destemidamente a visão artística, ainda que isso signifique um mergulho no imprevisível, White conclui:

(...) somente libertando a inteligência humana do senso histórico é que os homens estarão aptos a enfrentar os problemas do presente. As implicações de tudo isso para qualquer historiador que valoriza a visão artística como algo mais que mero divertimento são óbvias: ele tem de perguntar a si próprio de que modo pode participar dessa atividade libertadora, e se a sua participação acarreta forçosamente a destruição da própria história.24

Em seu últimos escritos publicados, White tem assumido um tom menos provocativo, sem contudo abandonar a marca da radicalidade comum em suas teses fundamentais. Um bom exemplo disso é Teoria literária e escrita da história, onde o autor procura sistematizar as principais objeções levantadas pelos críticos à sua obra, tentando responder detidamente a cada uma.
Contra a acusação de destruir a diferença entre fato e ficção, e de assim abrir espaço para toda aventura historiográfica, esclarece que sua teoria apenas redefine as relações entre os dois dentro dos discursos:

(...) se não existem fatos brutos, mas eventos sob diferentes descrições, a factualidade torna-se questão dos protocolos descritivos para transformar eventos em fatos (...) Os eventos acontecem, os fatos são constituídos pela descrição lingüística. O modo da linguagem usado para constituir os fatos pode ser formalizado e governado por regras, como nos discursos científicos e tradicionais; pode ser relativamente livre, como em todo discurso literário modernista ou pode ser uma combinação de práticas discursivas formalizadas e livres.25

É interessante ressaltar que grande parte dos autores citados nessa exposição pertencem a uma vertente historiográfica em crescimento nas últimas décadas, a denominada nova história cultural, que, por sua vez, tem identificado a representação como um dos problemas centrais da disciplina, procurando respostas a uma pergunta crucial: como a narrativa histórica representa a realidade?26
Nessa direção, a própria noção de documento, que sustentava a narrativa convencional, foi alvo de inúmeras interrogações, bem como foi realçado o papel ativo do historiador em sua recolha e interpretação, rompendo-se assim a idéia de que cabe a ele o simples registros dos testemunhos.27
Nesse caso, não se trata de substituir a ficção pela história mas de possibilitar uma aproximação poética em que todos os pontos de vista, contraditórios mas convergentes, estejam presentes, formando o que Steenmeijer chamou de representação totalizadora. Assim, a literatura pode ser considerada como uma leitora privilegiada dos acontecimentos históricos.28



________________________________________
1 BACZKO, Bronislaw . Les imaginaires sociaux. Paris: Payot, 1984, p. 27.
2 A categoria teórica mundo real, que estamos utilizando, pode ser compreendida como um sistema de idéias-imagens que dá significado à realidade, participando, assim, da sua existência. Logo, o real é, ao mesmo tempo, concretude e representação. Ver LE GOFF, Jacques. L'histoire etl'imaginaire. Entretien avec Jacques Le Goff. Apud CAZENAVE, Michel. Mythes et histoire. Paris: Albin Michel, 1984, p. 55.
3 MENDONÇA, Wilma Martins de. "Memórias do Cárcere: história sim, literatura também." In: Graphos: revista da Pós-graduação em Letras da UFPB. João Pessoa, n. 02, ano 1, 1995, pp. 123-148.
4 ARISTÓTELES. "Poética". In: Os Pensadores. Trad. Eudoro de Souza. T. IV., São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 443-471.
5 FERREIRA, Antonio Celso. "A narrativa histórica na prosa do mundo". In: Revista Itinerários [Pós-graduação em Letras - UNESP]. Araraquara, n. 15/16, 2000, pp. 133- 140.
6 COSTA LIMA, Luiz. O controle do imaginário: razão e imaginação no ocidente. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 31.
7 AQUINO, Ivânia Campigotto. Literatura e história em diálogo: um olhar sobre Canudos. Passo Fundo: UPF, 1999, p. 16.
8 SANTOS, Pedro Brum. Teorias do romance: relações entre ficção e história. Santa Maria: UFSM, 1996, p. 19.
9 No plano das condições concretas da existência, a falência dos regimes socialistas, por um lado, abalou a convicção de que era possível a reconstrução de uma sociedade alternativa ao capitalismo, dada a forma histórica de realização totalitária em que tais regimes haviam descambado. Por outro lado, as próprias economias do Primeiro Mundo não conseguiram resolver as questões sociais internas, aumentando o número de desempregados e sem lar, ao passo que a vigência da liberal democracia não impediu a ascensão da direita no Velho Mundo, com posições que podem ser associadas ao fascismo. E mais, a própria concepção dos Annales de uma "história global" esfacelou-se nessa encruzilhada de incertezas de final de século. Para uma reflexão mais aprofundada desse processo ver PESAVENTO, Sandra Jatahy. "Em busca de uma outra história: imaginando o imaginário." In: Revista Brasileira de História: Representações. São Paulo: ANPUH/CONTEXTO, vol. 15, nº 29, 1995, pp. 9-27.
10 STONE, Lawrence. “O ressurgimento da narrativa: reflexões sobre uma velha história.” Trad. Denise Bottmann. In: Revista de História. Campinas, 1991, n.º 2, pp. 12-27.
11 GAY, Peter. O estilo da história. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Cia, das Letras, 1990, pp. 21-29.
12 VEYNE, Paul. Como se escreve a história: Foucalt revoluciona a história. Trad. Alda Baltar e Maria A. Kneipp. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982, pp. 37-45.
13 SARAMAGO, José. "História e ficção". In: Jornal de Letras, Artes e Idéias. Lisboa: s/e, 1990, pp. 7-19.
14 RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Trad. Constança M. Cesar. Campinas: Papirus, 1994, p. 15.
15 NUNES, Benedito. "Narrativa histórica e narrativa ficcional." In: RIEDEL, Dirce Cortes (org.). Narrativa: ficção e história. Rio de Janeiro: Imago, 1988, p. 9-35.
16 CHALHOUB, Sidney, PEREIRA, Leonardo Affonso de M. (orgs.). A história contada. Capítulos de história social da literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, pp. 7-32.
17 CHALHOUB, Sidney, PEREIRA, Leonardo Affonso de M. (orgs.). Op. cit., p. 7.
18 BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1988, pp. 10-27.
19 BARTHES, Roland. Op. cit., p. 145.
20 SANTOS, Roberto Corrêa dos. "História como Literatura." In: Modos de saber, modos de adoecer. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999, pp.129-135.
21 WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica no século XIX. Trad. José Lourênio de Melo. São Paulo: Edusp, 1992, pp. 20-31.
22 WHITE, Hayden. "O texto histórico como artefato literário." In: Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. Trad. Alípio Correia de Franca Neto. 2ª ed. São Paulo: EDUSP, 2001, pp. 97-116.
23 WHITE, Hayden. "O fardo da história." In: Op. cit., pp. 39-64.
24 WHITE, Hayden. Op. cit., p. 52.
25 WHITE, Hayden. "Teoria literária e escrita da história." In: Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n. 7, 1994, pp. 21-48.
26 HUNT, L. (org.) A nova história cultural. Trad. Jeffrerson L. Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 39.
27 LE GOFF, Jacques. História e memória. Trad. Bernardo Leitão. Campinas: UNICAMP, 1990, p. 12. Historiadores estrangeiros renomados têm experimentado práticas narrativas novas, enfatizando a natureza sempre parcial não só dos testemunhos utilizados como também do próprio ato discursivo. Livros como o de Le Roy Ladurie, Carnival in romans; Georges Duby, The legend of Bouvines; Natalie Davies, The return of Martin Guerre; Carlo Ginzburg, O queijo e os vermes; Simon Schama, Citizens; no exterior, ou brasileiros como Nicolau Sevcenko, Orfeu extático na metrópole e Emília Viotti da Costa, Coroas de glória, lágrimas de sangue, são exemplos de escritos históricos capazes de problematizar o passado sem submetê-lo às verdades incontestáveis dos escritos unitários.
28 Citado por ESTEVES, Antonio R. “Literatura e história: um diálogo produtivo.” In: Fronteiras do Literário. Niterói: EDUF, 1997, p.65.

Nenhum comentário: