sexta-feira, 14 de novembro de 2008

CULTURALISMO E EXPERIÊNCIA: LEITURA DOS DEBATES EM TORNO DA OBRA DE E.P. THOMPSON

Edward Palmer Thompson (1924-1993) foi um historiador inglês. Que E.P. Thompson não fosse dado a teorias quase que poderia ser explicado pelos três adjetivos que estão junto ao seu nome: a data do nascimento e a data da sua formação intelectual, plena de reações anti-teóricas (Popper, Hempel, Crocce, entre outros) e a hegemonia destas escolas nos colégios e universidades britânicas; o seu local de nascença, inglês, berço dos principais pensadores empiristas (Hume, Bacon, dentre os principais) e corrente de pensamento dominante na Inglaterra; e se isto não fosse suficiente, ainda teríamos a sua profissão, que é classicamente a mãe do positivismo, apegada ao trabalho com ‘fontes’ ou documentos que são tradicionalmente fetichizados como forma de aceso à verdade e à realidade. Não é de estranhar, então, que este autor não fosse chegado à teoria, como mais de uma vez expressou, isto apesar de sua formação marxista.
Norberto O. Ferreras

"Estou tentando resgatar o pobre tecelão de malhas, o meeiro luddita, o tecelão do ‘obsoleto’ tear manual, o artesão ‘utópico’ e mesmo o iludido seguidor de Joanna Southcott, dos imensos ares de condescendência da posteridade. (...) eles viveram nesses tempos de aguda perturbação social, e nós não. Suas aspirações eram válidas nos termos de sua própria experiência; se foram vítimas acidentais da história, continuam a ser condenados em vida, vítimas acidentais" (E.P. Thompson).

"Los discipulos deben a sus maestros sólo una fe temporal y una suspensión del propio juicio hasta tanto no han recibido una instrucción completa, pero no una dimensión absoluta ni un cautiverio permanente de su mente ... Así pues dejemos que los grandes autores reciban el tributo que les corresponda, sin que el tiempo, que es autor de todos los autores, se vea privado del suyo, el cual consiste en avanzar ininterrupidamente en el descubrimiento de la verdad "(Francis Bacon).

I.
Edward Palmer Thompson (1924-1993) foi um historiador inglês. Que E.P. Thompson não fosse dado a teorias quase que poderia ser explicado pelos três adjetivos que estão junto ao seu nome: a data do nascimento e a data da sua formação intelectual, plena de reações anti-teóricas (Popper, Hempel, Crocce, entre outros) e a hegemonia destas escolas nos colégios e universidades britânicas; o seu local de nascença, inglês, berço dos principais pensadores empiristas (Hume, Bacon, dentre os principais) e corrente de pensamento dominante na Inglaterra; e se isto não fosse suficiente, ainda teríamos a sua profissão, que é classicamente a mãe do positivismo, apegada ao trabalho com ‘fontes’ ou documentos que são tradicionalmente fetichizados como forma de aceso à verdade e à realidade. Não é de estranhar, então, que este autor não fosse chegado à teoria, como mais de uma vez expressou, isto apesar de sua formação marxista.
Empirista marxista, ou marxista empirista, estava empenhado em recuperar a ‘experiência’ - palavra polissêmica e conceito polifuncional - dos diversos grupos de trabalhadores, enquanto tal ou no seu quotidiano, “... dos imensos ares de condescendência da posteridade”, e em mostrar que “Não deveríamos ter como único critério de julgamento o fato de as ações de um homem se justificarem, ou não, à luz da evolução posterior” (Thompson, 1987). Ou seja, propósitos de tipo empiristas ou práticos ligados à análise do contexto, no qual foram registrados os comportamentos e as ações vivenciadas. Pois então, por que o surgimento de polêmicas teóricas em torno de um autor que confessou ser empirista? Por que a canonização dos anos oitenta e as rejeições dos noventa?
Partindo destas perguntas, tentarei explicar, a partir da obra do autor e de alguns dos seus críticos, algumas das rupturas que favoreceram a explosão dos trabalhos nele baseados, como também os elementos que o ligaram à tradição da História Social e que o afastaram das novas temáticas e análises teóricas.

II.
Uma das questões teóricas que parecem ter marcado a obra de E.P. Thompson foi a sua procura por novas “metáforas” que substituíssem a de “base-superestrutura”. Para isto, centrou-se na análise da consciência da classe operária - mais precisamente no processo de constituição da mesma - apelando para a subjetividade, a relação entre as classes, a cultura e os processos formativos e constitutivos da dita classe.[2]
Nesta procura de uma mediação possível, Thompson achou na experiência a solução prática para analisar comportamentos, condutas e costumes na sua relação com a cultura - na realidade com culturas específicas - com conteúdos de classe, histórica e geograficamente datados - a classe operária ou os trabalhadores rurais na Inglaterra do século XVIII e do início do XIX. A experiência aparece recorrentemente na sua obra, denotando tempo e, portanto, dando à classe uma dimensão histórica. Classe é, para Thompson, um fenômeno histórico composto por uma multidão de experiências em relação umas com as outras e, num constante fazer-se, e não uma categoria analítica ou estrutural, (Thompson, 1987: 11 e 12).
Entre os objetivos de E.P. Thompson estavam os de mostrar como esta diversidade aparente é parte de uma experiência comum, e, por outro lado, como a ‘exploração’ não é só um conceito político-econômico de origens marxistas com fins moralizantes, mas um fato sentido, vivenciado, pelos que o experimentam. (Kaye, 1984: 180, 181 e 185).
Na busca de novas metáforas para substituir a de base-superestrutura valeu-se da relação consciência social - ser social: o ser social determina a consciência social. Melhor ainda, vamos colocar nas palavras do próprio autor:
A experiência de classe é determinada, em grande medida, pelas relações de produção em que os homens nasceram - ou entraram involuntariamente. A consciência de classe é a forma como essa experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, idéias e formas institucionais. Se a experiência aparece como determinada, o mesmo não ocorre com a consciência de classe.” (Thompson, 1987: 10)[3]
Para E.P. Thompson, a determinação seria feita de maneira direta sobre a experiência - e não de forma direta sobre a consciência social -, que uma vez tratada em termos culturais pelo sistema de idéias, valores, instituições e tradições próprias de um determinado grupo social, nos daria uma nova experiência, que é a que, agora sim, determina - exercendo limites e pressões - a consciência social. Os termos culturais nos dão as peculiaridades históricas, e até geográficas, da consciência social. A mediação, então, seria uma série de momentos intermediários entre o Ser e a sua constituição como consciência.
É necessário fazer mais uma ressalva sobre o conceito de experiência e refere-se ao uso do mesmo na filosofia. O que os filósofos chamam de experiência são os “sentimentos nus ou crus” ou sensações, embora os kantianos chamem assim ao imediatamente percebido. Um terceiro uso de experiência seria o daqueles que usam essa palavra para designar a retificação da compreensão prévia da realidade, ou seja, a noção dialética da experiência como negação de erros prévios, como acontece com Hegel e Hans-George Gadamer. Nesta terceira visão, experiência é vista como uma forma histórica de entendimento mais do que alguma coisa imediata, mediando o conceito e o particular concreto, aquilo que podemos conhecer mediante, justamente, a experiência (Jay, 1989: 38 e 39). Esta última é justamente o sentido dado por E.P. Thompson à experiência.
O caráter histórico e cultural da experiência gera uma série de desconfortos e dificuldades na hora de aplicar o método thompsoniano a outras realidades ou casos concretos. As complicações próprias do seu método geraram algumas críticas. Algumas o têm considerado como um culturalista – como o marxismo anglosaxónico influenciado pelo marxismo continental.[4] O culturalismo está marcado pela centralidade da cultura e da consciência que, embora mantendo a clássica dialética marxista entre ser e consciência, a mesma é tratada “experimentalmente”, analisando as formações sociais a partir da experiência. No culturalismo existe um interesse preponderante pela cultura e as lutas conscientes, mas sem relacioná-las com as estruturas nas quais estão contidas.
Estas críticas baseiam-se na falta de compreensão de E.P. Thompson do processo de industrialização no seu conjunto, a falta de análise das classes possuidoras, e, inclusive pela celebração de uma classe operária de tipo corporativa e isolada, o que se deveria a que a “... formação da consciência de classe está na integração da classe trabalhadora em um sistema de falsa consciência...” (Nairn, 1982: 185). Estes questionamentos vêm da falta de percepção do processo histórico a partir da ausência dos estudos da base (e a importância excessiva da superestrutura, além da forma do uso da teoria nos escritos thompsonianos).[5]
As críticas à perspectiva “culturalista” podem ser compreendidas dentro da tradição marxista apegada aos textos da maturidade de Marx e ao estruturalismo reinante nas décadas de 60 e 70, contrários às posições humanistas dos primeiros escritos de Marx e Engels, do tipo das seguidas por E.P. Thompson. Seja que reclamasse dos silêncios do marxismo sobre as mediações culturais e morais ou pelas objeções feitas a Das Kapital, pelo estudo intensivo do capital e não da lógica do capitalismo (Trimberger, 1986: 217-219), isto não podia deixar de levantar recriminações ao estruturalismo marxista.
A polêmica com os estruturalistas rendeu o principal trabalho teórico de E.P. Thompson: A miséria da teoria, centrado na defesa do materialismo histórico nos termos dos escritos da juventude de Marx - como a Ideologia Alemã, A Miséria da Filosofia e o Manifesto Comunista -, em oposição aos textos usados pelos marxistas estruturalistas - O Capital, os Grundisse, e a Introdução geral à crítica da economia política - que considerou um retrocesso com respeito à obra anterior de Marx (Thompson, 1981: 93 a 117, especialmente p. 100 e 249-250). A Miséria é uma tentativa de definir mais firmemente a questão da experiência, de defender o trabalho do historiador e de resgatar a Engels, o “velho palhaço”, do ostracismo, responsável pelo desvio reformista como tinha sido apresentado pelos seus rivais. Mas este trabalho centra-se, principalmente, no ataque a Althusser, a partir de acusações de stalinismo (Thompson, 1981: 118 a 139, especialmente p. 131 a 133)[6] e delineando duas tradições divergentes no marxismo, o materialismo histórico, na qual ele próprio se situa, e o stalinismo-estruturalista, Althusser e os seus epígonos britânicos como Perry Anderson e Tom Nairn.
Pouco se pode esperar que tamanho esforço dera em algo mais do que na consolidação de duas trincheiras com posições fixas à espera do assalto final - as metáforas militares pairam o debate, impossibilitando o diálogo entre ambas as posições. O engajamento de E.P. Thompson na disputa refere-se a continuação do seu projeto anti-stalinista. Este iniciou-se em 1956, data do seu afastamento do PC britânico como forma de protesto pelo apoio do mesmo à invasão da Hungria pela URSS. Neste caso, então, o estruturalismo corresponderia a uma determinada etapa do marxismo - a da guerra fria - marcada pelo conservadorismo dos PC nacionais e o apoio à URSS no seu avanço na Europa Oriental e com a supressão das liberdades democráticas. Portanto isso tinha que ser abandonado pela tradição marxista e seria libertado e superado pelo socialismo humanista que ele propiciava (Kaye, 1984: 213-215)[7].
A capacidade como polemista de E.P. Thompson liquidaram um inimigo que já estava em retirada dando-lhe, então, o golpe final. Porém, a vitoria de E.P. Thompson sobre Althusser não teve como conseqüência a entrada em cena de um humanismo socialista triunfante. Esteve acompanhada de um abandono quase completo das questões teóricas, não só na historiografia marxista, mas em toda a linha da história social.
Como generalizar a partir da contingência? É possível construir modelos a partir só dos dados, sem teoria? Thompson coloca a História como o absoluto, uma espécie de Aleph no qual todas as explicações possíveis estão contidas, como anteriormente Althusser o tinha feito com a Teoria. Vitoria a la Pirro para um marxista - ainda que heterodoxo -, que para vencer a disputa sacrificou a sua teoria, colocando-se nu diante do inimigo externo.

III.
Será a característica romântica da obra de Thompson o que lhe têm dado tanta repercussão? Como explicar que apesar de tantas respostas e questionamentos permanece a sua influência na historiografia dos últimos 30 anos? É muito difícil achar uma explicação para isto partindo somente da sua obra. Cultuado e rejeitado com a mesma paixão, a sua obra continua estimulando os historiadores e cientistas sociais, tanto que E.P. Thompson é o historiador mais citado em todo o mundo e é um dos 250 autores mais citados em todos os tempos[8].
Neste processo de “canonização”, o que na realidade, e seguindo as categorias católicas, só auxiliou na sua “beatificação”, é interessante frisar que participaram alguns dos seus atuais críticos. No momento da “consagração”, e a mesma tem muito a ver com a apropriação que foi feita da sua obra, The making of... era usado por ativistas universitários, para vincular o mundo acadêmico à comunidade, para ser lido em cursos, na rede de educação de adultos e em grupos de discussão (Scott, 1988: 69)[9].
Para poder compreender o porquê de tanta preocupação com o nosso “herói” tentaremos fazer um pequeno insight sobre a questão da teoria em E.P. Thompson, mostrando alguns questionamentos e análises dos autores revisionistas[10]. Seria impossível seguir o fio da meada, portanto, vou ser parcial na seleção dos autores e das questões abordadas.

IV.
Até o momento, apresentamos algumas das questões que tiveram E.P. Thompson no centro da cena dos debates teóricos durante as décadas de 60 e 70, e no início da de 80. Nos mesmos, a sua presença e a defesa dos seus argumentos estiveram relacionados com as questões políticas por ele representadas. Na sua luta contra o stalinismo, tudo o que estivesse relacionado com este, ou o que ele achava que estava relacionado, devia ser combatido. Em torno destas questões, estiveram posicionadas as suas brigas com o estruturalismo e o funcionalismo. Estas disputas acabaram desgastando o debate e as partes chegaram a estabelecer um ponto sem retorno. Neste processo, o corpus teórico do marxismo cresceu significativamente, sendo que as principais contribuições, e as mais heterodoxas, vieram do chamado (e nunca aceito como tal) marxismo culturalista. Durante o período, o marxismo culturalista atingiu a hegemonia da história social[11].
Mas, na década de 80 e no que vai da de 90, os desafios para E.P. Thompson e os culturalistas foram lançados por novas tendências vindas de outras áreas – primeiro, da antropologia e depois, com maior agressividade, da lingüística - e teorias - principalmente do pós-estruturalismo. Os historiadores ligados ao Linguistic turn acusaram a Thompson de carente de teoria e de professar uma história social démod[12]. O primeiro questionamento não é novo e o segundo parece agressivo demais. Este adjetivo de culturalista complicou a compreensão da obra de E.P. Thompson, tanto que até no seu último livro – Costumes em comum – tentou esclarecer o que era cultura para ele, ou melhor ainda como ele utilizava o conceito de cultura. Desta forma, tentava diferenciar-se da incorporação a-crítica pelos historiadores do conceito de cultura popular tal como é utilizado por determinados antropólogos[13]. Certas correntes da antropologia tem uma “perspectiva ultraconsensual” da cultura. Para escapar desta armadilha, a saída reside na contextualização da cultura popular. Assim, tornou-se um conceito mais concreto e utilizável “... mas localizado dentro de um equilíbrio particular, de relações sociais, um ambiente de trabalho de exploração e resistência à exploração, de relações de poder mascaradas pelos ritos do paternalismo e da deferência.” (Thompson, 1998: 17).
Porém, os mesmos nos levam a perguntar: o que estes autores esperavam achar em E.P. Thompson? Ou melhor, podiam eles esperar alguma coisa de Thompson? Desta segunda maneira, podemos alcançar uma resposta mais clara.

V.
Vamos apresentar algumas das diversas questões levantadas pelos autores revisionistas: as feministas questionaram a análise, ou a falta dela, feito da participação da mulher na construção da classe operária; o conceito de experiência também foi criticado pela proximidade do mesmo com a contingência, a empiria, e ainda de manter elementos economicistas; também a experiência nos leva ao uso do conceito de classe, visto como essencialista e totalizante, e que nos impede de perceber a diversidade tanto nos grupos sociais quanto nos distintos subgrupos que o integram; outra das questões está vinculada com o uso de categorias marxistas e, portanto, imersa dentro de uma das grandes narrativas. Mas E.P. Thompson tem elementos em comum com as novas tendências, principalmente o estudo e o uso da linguagem dos grupos subalternos e a questão da diversidade.
Embora na obra de E.P. Thompson achemos estudos dedicados à linguagem e ao discurso, a mesma tem sido questionada pelos historiadores próximos do Linguistic turn. Isto deveu-se, em grande medida, à forma em que a linguagem e o discurso entraram no seus trabalhos. O conceito de ‘experiência’ apresenta com clareza este tipo de críticas. Segundo as mesmas, a experiência não se constitui previamente à linguagem, mas é constituído ativamente por esta. Mas o programa do materialismo histórico mantido por E.P. Thompson é oposto ao idealismo, ao subjetivismo e ao reducionismo (neste caso ao discurso) revisionista, dado que a linguagem é incorporada a uma ampla formação analítica que compreende a agência e a estrutura, o dito e o feito, o consciente e o inconsciente e, ainda, as intenções e conseqüências da ação individual e coletiva (Kirk, 1994: 222).
Porém, existem algumas semelhanças entre Thompson e os autores revisionistas, principalmente os do Linguistic turn. Primeiro, na importância dada ao poder da linguagem, a possibilidade da mesma de estruturar a realidade, de ser o canal da agência e, por último, por funcionar como o palco para os conflitos fundamentais. A diferença com os revisionistas é dada pela intenção destes últimos de querer suplantar o materialismo histórico no qual se baseia a análise thompsoniana e a ênfase na determinação da experiência de classe. Finalmente, pelo apelo a terminar com a História Social, tal como foi praticada nas últimas décadas, não só por Thompson, mas pelas diversas escolas que nele se basearam (Steimberg, 1996: 194).
Neste sentido, não podemos esquecer que parte da obra de E. P. Thompson esteve dedicada às questões vinculadas às formas em que foi articulado um discurso próprio dos trabalhadores ou dos plebeus, e ainda de como o discurso do patriciado (ou da burguesia) era re-apropriado e resignificado pelos plebeus (e depois pela classe operária), fosse para contestar a economia política clássica, construindo uma economia moral própria, ou usando as normas, tradições e leis em seu próprio beneficio (Thompson, 1987; 1979; 1998), ou seja, que as questões da linguagem não ficaram de fora do horizonte thompsoniano. Isto pode ser visto no livro The making of the english working class.
Neste estudo, a classe existe à medida que existe o sentimento e a articulação de uma identidade, no lugar de uma identidade objetiva dos seus interesses. Sem consciência de classe não há classe. A consciência de classe não é deduzida por Thompson em termos econômicos. Então ele a procura na construção histórica da experiência, na elaboração de um vocabulário e de uma organização conceptual através da qual a sua identidade, como classe, poderia ser pensada e atualizada (Sewell Jr., 1990: 54).
A questão do vocabulário, e de um discurso próprio dos trabalhadores, é central no estudo da formação da classe operária inglesa. Em primeiro lugar, porque a classe operária define-se a si mesma como classe diferenciando-se conceptualmente da classe média. Para isto, desenvolve uma crítica própria da sociedade capitalista e das relações de propriedade, o que vai elaborando um discurso de classe. Mas isto acontece no mesmo momento da constituição de um movimento da classe operária, com as suas instituições (jornais, clubes, sindicatos, etc.). Estas instituições são o núcleo em torno das quais os operários mobilizam-se para lutar pelas suas reivindicações. São nestas instituições que o discurso de classe cresce e se expande e, ao mesmo tempo, dá forma e motivação ao movimento da classe operária. Existe, então, uma forte inter-relação entre o movimento da classe operária e o seu discurso.
O discurso da classe operária já formada, do modo como é apresentado por E.P. Thompson, parte de um discurso preexistente. Seguindo com a obra Formação..., no prefácio ele já faz um esclarecimento que especifica que a consciência de classe não é o reflexo da exploração. A própria organização do livro apresenta esta transformação, como apresenta William Sewell Jr.: “as tradições políticas e religiosas descritas na Parte Um, quando submetidas à experiência da exploração descritas na Parte Dois, são transformadas via as agitações políticas descritas na maior parte da Parte Três na ‘consciência de classe’ descrita no capítulo final” (Sewell Jr., 1990: 69). Isto implica que, para poder estabelecer ou conhecer o discurso da classe operária, tem que se conhecer suas raízes e componentes preexistentes.
Mas isto nos leva, se concordamos com que a classe se faz-desfaz-refaz, a que vários discursos - às vezes rivais, às vezes complementares - estão atuando sobre a classe operária e que estes convivem na mesma. Dependendo da conjuntura, um ou outro tornou-se o dominante ou o principal, o que não teria invalidado que outros setores que compõem a classe operária tivessem os seus próprios discursos - as mulheres, os irlandeses, os radicais, os metodistas, etc. - e que os mesmos não só coexistissem na mesma classe, como o fazem na mesma pessoa (Sewell Jr., 1990: 72).
VI.
Como mostramos, se o trabalho de E.P. Thompson teve pontos conflitantes com a obra dos autores estruturalistas, também as teve com os pós-estruturalistas. Porém temáticas e preocupações similares também existiram, como é o caso do estudo do discurso da classe, que aparentemente seria um patrimônio dos historiadores chamados de revisionistas.
O engajamento anti-stalinista o levou a fortes choques com aqueles que ele identificou como defensores da perspectiva stalinista, mesmo que suas posições políticas não fossem pró-PC-URSS. Isto levou a que Thompson estivesse orientado à depuração do marxismo das suas implicações estruturalistas, tanto na sua produção especificamente histórica quanto na teórica. Thompson identificava o estruturalismo como a teoria própria do marxismo da guerra fria e, portanto, funcional ao stalinismo e ao mecanicismo do mesmo, que depreciava o humano e a diversidade de experiências.
Neste engajamento, muitos dos seus intentos de provar o erro das premissas do seu adversário o levou a contradições e oposições consigo mesmo e, como já vimos, com o seu anti-stalinismo. Mas, por outro lado, a sua busca permanente pela ampliação e superação do corpus estabelecido no interior do marxismo permitiram a introdução de novos conceitos e preocupações no interior da história social.
O humanismo thompsoniano é também parte da tendência ao estudo da diversidade dentro da história. Um exemplo disto é a própria epígrafe que colocamos no início deste trabalho. Na mesma, faz-se referência à procura pela experiência de cada um dos sujeitos, coletivos ou individuais, sendo que esta, e ainda a individual, é central no seu próprio projeto historiográfico e no despertar da consciência das pessoas para o socialismo. Para isto, é necessário o reconhecimento de um passado em comum de lutas contra a exploração. Para sua superação, seria necessário resgatar uma série de tradições e valores que dariam sentido a essa consciência em comum.
Mas nesta procura da diversidade, alguns setores não ficaram especialmente satisfeitos com a explicação de Thompson sobre o surgimento da classe operária. As feministas, por exemplo, reclamam que o papel da mulher não teria sido analisado de acordo com sua importância. Embora os estudos de gênero alertem para a diversidade e as divisões internas dentro da classe operária, as feministas questionam o discurso sobre o sexo. Uma explicação possível é que E.P. Thompson foi parte da tradição socialista e igualitarista na qual a diversidade e a complexidade da diferença sexual é vista como ‘reacionária’ e ignora a mulher na constituição e construção da classe operária. Segundo Joan Scott, esta tradição promete igualdade, mas não reconhece o uso da diferença (SCOTT, J., 1988: 83). Mas esta questão foi atendida por E.P. Thompson, e ainda por outros teóricos e historiadores sociais, que têm se mostrado mais preocupados pela multiplicidade das vivências operárias ou plebéias, dado que nesta multiplicidade as diferenças não teriam dominado umas sobre as outras, prevalecendo a experiência das relações de produção (Thomspon, 1998: 20).[14]
A obra de E.P. Thompson produziu mais confusão do que esclarecimento, mas talvez justamente esta falta de clareza é o que lhe conferiu o caráter de texto obrigatório na história social e ainda entre os historiadores revisionistas. O uso imaginativo da linguagem e, principalmente, a sua riqueza de idéias parecem ter conseqüências duradouras na história social, e ainda o questionado conceito de experiência continua parecendo atrativo para aqueles que se opõem às concepções aparentemente consolidadas.
Para finalizar, retornamos à primeira das epígrafes. Esse resgate do passado da multiplicidade das experiências é uma tentativa para revalorizar as perdas dos grupos subalternos, rememorando a importância das posições históricas, valores e tradições que se transformaram em instrumentos para compreender conflitos e processos, e que apesar das críticas feitas, e aqui comentadas de estruturalistas e revisionistas, não podem ser nem esquecidas nem abandonadas.

Referências bibliográficas
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[2].- É interessante ver em Thompson que a “burguesia” aparece como formada e pronta, ainda que interagindo com a classe operária ou o campesinato inglês. Como ele questiona que em Marx é a industrialização que produziu o operariado, na sua obra também a industrialização aparece com o Deus ex-machina que produziu o industrial.
[3].- Comparar com a forma em que Marx (1970: 35-6) estabelece a determinação: “El modo de producción de la vida material determina [ben­dingen] el proceso de la vida social, política y espiritual en general. No es la conciencia del hombre la que determina su ser, sino por el contrario, el ser social es lo que determina su conciencia”.
[4].- Os autores que assim o tem considerado são Anderson, 1985; Cohen, 1978; Johnson, 1978; Nairn, 1982. Thompson e seus defensores rejeitaram ser designados como culturalistas. Wood, 1990: 54.
[5].- Ver a queixa do próprio Thompson com respeito aos seus críticos pelo uso da categoria gramsciana de hegemonia e de modelos. Cf. Thompson, s/d.
[6].- Ele esquece que Althusser toma de Engels alguns conceitos como o de “autonomia relativa”, entre outros.
[7].- Para maiores precissões sobre o engajamento político de Thompson no período do debate, ver Palmer, 1996: 88 a 107.
[8].- Segundo mostra Eric Hobsbawm, na orelha do livro já mencionado de Bryan Palmer, citando o Arts an Humanities Index. As seqüelas de sua obra no Brasil e na Argentina não são difíceis de acompanhar, sobre tudo na área da história do trabalho e da cultura. Repercussões ainda mais afastadas para nós aparecem em Chandavarkar, 1997 e Cooper, 1995. Conhecendo a biografia e bibliografia de Thompson, a surpresa diminui quando refere-se à India, porém estamos abarcando o mapa quase que de extremo a extremo.
[9].- A mesma visão é apresentada por Steedman, 1994: 111.
[10].- Chamo de “revisionistas” os autores pós-modernos/pós-estruturalistas/feministas, para assim poder abranger as distintas escolas e procedências. Revisionistas parece um termo adequado se considerada a paixão por deconstrutir e questionar o dado como certo e imutável.
[11].- Os momentos finais e de ruptura em tais debates podem ser encontrados em três artigos que aparecem reunidos num livro com o título de El Culturalismo. Debates en torno a Miséria de la Teoría. Os artigos são: Hall, 1984; Johnson, 1984 e Thompson, 1984. A discussão bem pode ter continuado, porém o nível de agressividade das exposições, num debate organizado pelo History Worshop, tornou impossível uma continuação do mesmo sem preconceitos de ambas as partes.
[12].- A ‘falta de teoria’ foi o argumento utilizado para rejeitar o artigo “Hunting the Jacobin fox”, publicado postumamente em Past and Present, de 1994 (n. 142). A apreciação de que o seu método “...parece um tanto óbvio e um chapéu velho e inútil...” corresponde a Levine, 1993: 381. Ambos são exemplos do seguimento das modas e da intolerância das mesmas.
[13].- O diretamente aludido por E.P. Thompson é Peter Burke. Vide Burke: 1989.
[14].- Para estas colocações Thompson baseou-se na obra de Antonio Gramsci.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

PERSPECTIVAS PARA UMA HISTORIOGRAFIA CULTURAL

Não é nada fácil falar sobre cultura e sobre história cultural, já que tudo hoje parece impregnado e medido pela cultura. A "cultura" transformou-se na categoria chave para a compreensão do mundo contemporâneo e, como reconheceu recentemente Jameson, até mesmo os níveis políticos e ideológicos devem ser desemaranhados de seu modo primário de representação que é cultural. Peter Burke, no texto da sua palestra, começa exatamente por reconhecer esta dificuldade - dificuldade que temos até em definir os territórios, já que as tradicionais fronteiras de pesquisa foram quebradas - e, prefere pela menção a dois autores "clássicos" da história cultural: Burckhardt e Huizinga.
Elias Thomé Saliba

Das várias maneiras de aquilatar o reconhecimento destes "clássicos" da história da cultura, a mais sintomática é verificar o número de vezes que foram e ainda são citados, todas às vezes na qual se trata desse tema. Não por coincidência, portanto, que, da mesma maneira que Peter Burke, E.H. Gombrich, na sua famosa conferencia de 1967, sobre História cultural, também se refira reiteradamente às obras, senão clássicas, pelo menos fundadoras, de Burckhardt e Huiziga. [Gombrich, 1969] Também não é coincidência que Gombrich também partilhe do mesmo dilema - talvez o principal - apontando para uma história cultural: "como resistir à fragmentação sem voltar ao pressuposto do Zeitgeist ou, da unidade cultural"?
Gombrich descreve este afastamento dos "clássicos" como um abandono da metafísica hegeliana e analisa a construção de uma (nova) historiografia cultural por sobre os escombros dos alicerces do sistema hegeliano. É a busca difusa desta unidade cultural, que ele aponta nas obras de Burckhardt e na do seu seguidor, Huizinga - que constitui a tarefa teórica de uma história da cultura para estes "clássicos". Esta tarefa, observa Gombrich, guarda, estreitas semelhanças com o edifício hegelianos da história cultural, e como o seu corolário, o método de exegese: "tendo postulado a unidade de todas as manifestações de uma civilização", argumenta Gombrich o método consiste em tomar diversos elementos da cultura, por exemplo, a arquitetura grega e a filosofia grega, e perguntar como poderá demonstrar-se que são exemplos do mesmo espírito. No fim de uma tal interpretação de haver sempre triunfante QED euclidiano, pois foi essa mesma tarefa que Hegel atribui à história: descobrir em cada factual o principal geral que lhe subjaz." [Gombrich, 1969: 21-33]
A observação de Gombrich sobre os traços hegelianos nos dois autores considerados como "clássicos" da historiografia cultural, vem bem a propósito de identificar, por trás dos vários entendimentos de uma história cultural, as diferentes concepções teóricas e diferentes caminhos metodológicos. Podemos notar que é difícil discordar dos quatros aspectos, assimilados por Burke, que inviabilizam uma aceitação contemporânea de uma história cultural nos moldes "clássicos". Ninguém defende hoje, pelo menos de forma programática, uma história da cultura "suspensa no ar", ou seja, carente de um exame mais sólido dos entrecruzamentos de uma história social, embora também seja fácil verificar as dificuldades de praticar uma história cultural que resista às tentações de "dissolver" o social. O mesmo pode ser dito com relação ao pressuposto da existência de um "espírito da época", incluindo, como bem aponta Burke, a ingênua noção de uma homogeneidade cultural. A própria noção de Cultura, para além da "grande narrativa da civilização ocidental", alargou-se em direção de outras dimensões e outros territórios. Assim, só podemos concordar com tais aspectos, assimilados na palestra de Burke, com única ressalva de que, para nós, eles se constituem mais em sintomas do que propriamente a essência das questões presentes na proposta de uma renovada historiografia cultural.
O problema é que por trás destes sintomas está toda uma gama das mais concepções teóricas - e a mudança de enfoque da história cultural tem mais a ver com uma alteração do papel da teoria no trabalho historiográfico. Gombrich tem razão quando argumenta, no texto já citado, que a historiografia cultural procurou encontrar seus caminhos através do esforço em abandonar os traços metafísicos, presentes tanto no difuso hegelianismo e nos seus desdobramentos, quanto nas correntes marxistas posteriores. O mais forte traço, por assim dizer, "metafísico" estava expresso numa ênfase no dever ser (mais no que no ser) e em explicações, implícita e explicitamente teleológicas. Quase toda a produção historiográfica dos anos oitenta (falamos sempre em termos de tendências) foi, no fundo, uma crítica velada àquela concepção prescritiva, abstrata e, ao mesmo tempo normativa de Cultura, fundada em modelos. O conceito gramsciano de hegemonia - muito citado, pouco lido e ainda menos entendido na pratica historiográfica - de larga circulação na historiografia britânica do pós-guerra serviu de mote inspirador para muitos dos trabalhos mais importantes nesta área. Os historiadores da Cultura tratavam de emancipar-se de modelos que remetiam o social a outra coisa e não a si mesmo. A "cultura", com todo o seu arsenal simbólico e imaginário, passou a ser relacionada a uma totalidade histórica antes desprezada: como se formaram os mecanismos de dominação e de exploração entre os homens? Como estes mecanismos (ao nível do cultural) se confrontam, se difundiram e se perpetuam? Assim, os símbolos, as imagens, as mentalidades, as praticas culturais, foram consideradas como lugares de exercícios de poder, de dominação e de conflitos sociais.
Porque este retorno ao cultural era também sintoma de um cansaço com uma história saturada de estruturas, hierarquias, modos-de-produção, sistemas, subsistemas, modelos - enfim, da história como um processo sem sujeito. O operário fora das fábricas, a mulher pobre, os vadios, as prostitutas, as feiticeiras, o escravo urbano, os marginais, moleiros perseguidos, bizarros guerreiros medievais, camponeses encalacrados em processos, escritores e artistas obscuros - foram se incorporando como temas conspícuos da historiografia. Compreender como os homens do passado se compreendiam, como eles se constituíam a si mesmos, à sua totalidade e a sua própria história - tornou-se uma nova missão para os historiadores. O passado passou a ser visto como um feixe de práticas discursivas, como uma sucessão de versões que se sobrepunham umas às outras numa regressão quase infinita. Os objetos, antes inscritos e recortados de uma história social, fragmentaram-se e dissolveram-se num difuso território da indeterminação.
A própria dimensão cultural ganhou novos contornos: modo de expressão e de auto-elaboração de grupos sociais no correr da história, tornou-se, portanto, também de conflitos, de lutas, de possíveis não-equivalentes. A cultura passou a ganhar, nos livros de história, os contornos daquilo a que Sartre apenas vislumbrou, chamando de dimensão "prático-inerte" da vida humana, salientando, numa alusão famosa que, afinal, na história, "não se toma a Bastilha todos os dias". Assim, a história cultural, para além dos obstáculos, apontados por Burke a partir dos "clássicos", e dos quais ela tenta se livrar, pode ser geralmente redefinida como um estudo dos processos e práticas das quais se constrói um sentido e se forjam os significantes do mundo social.
Embora concordamos com o diagnóstico de Burke a respeito da história cultural, é necessário, portanto, acrescentar este diagnóstico, todas estas alterações do próprio estatuto teórico na compreensão da cultura e da história. Com a perda da confiança nas certezas da quantificação, com o abandono dos recortes ditos "clássicos", sejam geográficos ou temáticos; com o questionamento das noções ("mentalidades", "cultura popular", etc.) ou das categorias ("classes sociais, classificações socioprofissionais, etc.); com a desconfiança nos modelos interpretativos (estruturalistas, marxistas, demográficos, etc.), a História Cultural obriga-se hoje, cada vez mais, a buscar novos caminhos.(Chartier, 1995)".
Também consideramos problemático descrever (?), como se faz de passagem, a abordagem da atual história cultural como "antropologia histórica ou, história antropológica". E isto pelo simples fato de que a noção de cultura e, por conseguinte, suas respectivas derivações teóricas entre antropólogos, envolve uma diversidade de abordagens tão (ou mais) polêmica quanto entre os historiadores. Ou a noção de cultura, em Clifford Geertz e Lévi-Strauss, seria a mesma e partiria dos mesmos pressupostos teóricos?
Embora a corrente de maior prestígio entre os historiadores tenha sido a antropologia simbólica, associada à obra de autores como Mary Douglas, Victor Turner e Clifford Geertz, é necessário reconhecer estas diferenças na abordagem da própria categoria "cultura" - e isto, para além das simples alternativas entre globalidade e fragmentação. Os métodos etnográficos dessa vertente da antropologia cultural, fundados na interpretação dos elementos culturais, essencialmente como textos ou, como atos simbólicos, embalaram o trabalho de muitos historiadores. A extensão da noção de texto para todos os objetos e temas da história cultural levou Geertz, um dos antropólogos mais notáveis dessa corrente a falar numa "Nova Filosofia", que ele definiu como estudo da significação fixada e separada dos processos sociais que a engendraram". Os historiadores, salvo raríssimas exceções, partiram para transformar tudo em texto e encontrar no passado "estruturas de significado", "gabaritos simbólicos", sistemas simbólicos e outras variações. Comportamento não-escrito de resistência à mudança? Discurso político? Festas e folguedos comunitários? Crenças, tradições orais ou rituais? Tudo poderia ser visto pela grade da textualização, tudo poderia ser tratado como texto, ou seja, como um conjunto potencialmente significativo. Pretensamente munidos de um método, chamado de descrição densa, os historiadores acabam por passar ao largo da singularidade dos objetos, produzindo generalidades... A descrição densa de Geertz é uma miscelânea, define um antropólogo, é aquilo que todo antropólogo, munido de boas intenções tentou fazer depois das críticas do objetivismo, do colonialismo e do etnocentrismo. [Gomes Jr., 1992]
Afinal, todos desejamos que a antropologia histórica seja bem-vinda para a historiografia cultural, mas, com a condição do historiador fazer funcionar, como disse Thompson, aquela vigilante casa de cambio teórico, na alfândega epistemológica, ou seja, qualquer diálogo interdisciplinar só poderá ser legitimo se incorporar uma discussão de teoria e de métodos.
Peter Burke exemplifica os novos dilemas da historia cultural, tecendo comentários em torno das obras de Simon Schama e de Nicolau Sevcenko. A caracterização do livro de Sevcenko como "livro de fragmentos" parece-nos ligeira e, em todo caso, procede de uma leitura equivocada. Em primeiro lugar, Orfeu extático não é um livro sobre a Semana de Arte Moderna de 1922, mas um variadíssimo painel dos impasses da modernidade cultural brasileira, tendo como centro a urbanização acelerada de São Paulo, nos anos vinte. Nunca será demais lembrar - pois o silencio da critica a este respeito é assustador - que Orfeu Extático é ainda uma releitura original do modernismo paulista, através do seu ambíguo num cenário de desenraizamento e fragmentação que converge, rapidamente, para repotencializar atitudes nacionalistas e mitos de mobilização coletiva. Não custa lembrar que a semana de 1922 é caracterizada, no mesmo livro como um tour de force de propaganda em favor da arte moderna em São Paulo e apenas mais um evento entre a extensa programação de festas cívicas que aconteciam na cidade, inclusive com patrocínio e o incentivo do governador do Estado. Em todos os capítulos há uma sutil linha interpretativa, mostrando como a urbanização acelerada e a velocidade tecnológica conjugavam-se com símbolos regressivos e arcaicos, próprios de uma geração que não tinha mais um passado - e partia numa busca sôfrega pelas raízes tradicionais paulistas de bandeirantes, "caipiras estilizados", forjando todo um imaginários de mitos, novos ou tradicionais. O livro, como um todo, constitui uma desmistificação da aura de ilusão presente no gesto pretensamente inovador dos nossos modernistas, mostrando-se que, por trás da forma, do vocabulário e do repertório de imagens, subsistia a mesma tônica idealista, nativista, nacionalista e militante. A ritualização das fantasias coletivas, expressa o mito do orfismo, impregnada toda a reconstrução desse cenário e - só não vê que não quer - possibilita, em extensão, repensar criticamente os mitos populistas na história cultural brasileira. [Saliba, 1993]
Encontro cultural, circularidade entre cultura erudita e popular e processo de cotidianização - apontados por Burke como índices de um ponto de vista novo para seu estudo sobre o renascimento, constituem-se, na verdade em desafios heurísticos para o historiador da cultura. Historiador que, hoje, mais do que nunca, e ao contrario dos tempos nos quais a procura do Zeitgeist é que dava o tom, encontra talvez a sua tarefa mais complexa na busca empírica dessas pluralidades culturais. Porque, em História cultural, ou talvez mesmo no conhecimento histórico tout cour, mais difícil do que fornecer a receita, é fazer o bolo sem desandar a massa... O historiador deve esforçar-se por superar, heuristicamente, duas das dificuldades mais comuns aos estudos culturais: sair das prisões interpretativas dos "contextos" econômicos ou sociais ou sócio-culturais que a tudo explicam (ou simplificam) e afinar seu diapasão (e sua sensibilidade) para aquilo que Michel De Certeau chamou de "artes de fazer", ou seja, para uma lógica específica de algumas manifestações "populares" - lógica marcada pela contradição e pela ambigüidade - características, não raro, impermeáveis à lógica racional. Afinal, a partir de quais perspectivas falam os historiadores da cultura popular? - perguntavam De Certeau e D. Júlia em conhecido artigo - argumentando "que as noções que tais historiadores se utilizam, para construir a sua rede de inventário, foram todas retiradas das categorias do saber ou, mais amplamente, da cultura "culta". [De Certeau, e Júlia, 1989]
Em suma, a história cultural transformou-se na principal fronteira dos estudos históricos na atualidade, exatamente, porque não há, a rigor, entradas privilegiadas nem exigências previas para o estudo das culturas. Exigências prévias que faziam parte das concepções totalizantes, de extensão hegeliana ou não, mas, sempre fortemente marcadas por categorias teleológicas que, afinal, viam a história como exemplo de evolução "progressiva" e de conjunto de toda humanidade. Neste caso, nem é preciso ser pós moderno, para continuar acreditando que o pensamento racionalista conduza, necessariamente, ao progresso humano...
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Referências Bibliográficas:
Gombrich, Ernst. In search on Cultural History. Oxford: Oxford University Press, 1969.
Saliba, Elias Th. Cultura Modernista em São Paulo Estudos Históricos, 11: 128-132, 1993
Chartier, Roger, Faire de l’Histoire après 20 annes Le Monde des livres, 24.02.95, p.4.
Gomes Jr., Guilherme Simões. A hermenêutica cultural de Clifford Geertz .Margem, 1. 37-46, 1992.
De Certeau, Michel & Júlia, Dominique. A beleza do morto: o conceito de cultura popular In: Revel, J. A Invenção da Sociedade. Lisboa: Difel, 1989, p. 63-64.
Falcon, Francisco J. Calazans. A História Cultural. In: Rascunhos de História. Rio de Janeiro: Puc, 1991.
http://www.uem.br/~dhi/Rev_a02.htm