sexta-feira, 14 de novembro de 2008

CULTURALISMO E EXPERIÊNCIA: LEITURA DOS DEBATES EM TORNO DA OBRA DE E.P. THOMPSON

Edward Palmer Thompson (1924-1993) foi um historiador inglês. Que E.P. Thompson não fosse dado a teorias quase que poderia ser explicado pelos três adjetivos que estão junto ao seu nome: a data do nascimento e a data da sua formação intelectual, plena de reações anti-teóricas (Popper, Hempel, Crocce, entre outros) e a hegemonia destas escolas nos colégios e universidades britânicas; o seu local de nascença, inglês, berço dos principais pensadores empiristas (Hume, Bacon, dentre os principais) e corrente de pensamento dominante na Inglaterra; e se isto não fosse suficiente, ainda teríamos a sua profissão, que é classicamente a mãe do positivismo, apegada ao trabalho com ‘fontes’ ou documentos que são tradicionalmente fetichizados como forma de aceso à verdade e à realidade. Não é de estranhar, então, que este autor não fosse chegado à teoria, como mais de uma vez expressou, isto apesar de sua formação marxista.
Norberto O. Ferreras

"Estou tentando resgatar o pobre tecelão de malhas, o meeiro luddita, o tecelão do ‘obsoleto’ tear manual, o artesão ‘utópico’ e mesmo o iludido seguidor de Joanna Southcott, dos imensos ares de condescendência da posteridade. (...) eles viveram nesses tempos de aguda perturbação social, e nós não. Suas aspirações eram válidas nos termos de sua própria experiência; se foram vítimas acidentais da história, continuam a ser condenados em vida, vítimas acidentais" (E.P. Thompson).

"Los discipulos deben a sus maestros sólo una fe temporal y una suspensión del propio juicio hasta tanto no han recibido una instrucción completa, pero no una dimensión absoluta ni un cautiverio permanente de su mente ... Así pues dejemos que los grandes autores reciban el tributo que les corresponda, sin que el tiempo, que es autor de todos los autores, se vea privado del suyo, el cual consiste en avanzar ininterrupidamente en el descubrimiento de la verdad "(Francis Bacon).

I.
Edward Palmer Thompson (1924-1993) foi um historiador inglês. Que E.P. Thompson não fosse dado a teorias quase que poderia ser explicado pelos três adjetivos que estão junto ao seu nome: a data do nascimento e a data da sua formação intelectual, plena de reações anti-teóricas (Popper, Hempel, Crocce, entre outros) e a hegemonia destas escolas nos colégios e universidades britânicas; o seu local de nascença, inglês, berço dos principais pensadores empiristas (Hume, Bacon, dentre os principais) e corrente de pensamento dominante na Inglaterra; e se isto não fosse suficiente, ainda teríamos a sua profissão, que é classicamente a mãe do positivismo, apegada ao trabalho com ‘fontes’ ou documentos que são tradicionalmente fetichizados como forma de aceso à verdade e à realidade. Não é de estranhar, então, que este autor não fosse chegado à teoria, como mais de uma vez expressou, isto apesar de sua formação marxista.
Empirista marxista, ou marxista empirista, estava empenhado em recuperar a ‘experiência’ - palavra polissêmica e conceito polifuncional - dos diversos grupos de trabalhadores, enquanto tal ou no seu quotidiano, “... dos imensos ares de condescendência da posteridade”, e em mostrar que “Não deveríamos ter como único critério de julgamento o fato de as ações de um homem se justificarem, ou não, à luz da evolução posterior” (Thompson, 1987). Ou seja, propósitos de tipo empiristas ou práticos ligados à análise do contexto, no qual foram registrados os comportamentos e as ações vivenciadas. Pois então, por que o surgimento de polêmicas teóricas em torno de um autor que confessou ser empirista? Por que a canonização dos anos oitenta e as rejeições dos noventa?
Partindo destas perguntas, tentarei explicar, a partir da obra do autor e de alguns dos seus críticos, algumas das rupturas que favoreceram a explosão dos trabalhos nele baseados, como também os elementos que o ligaram à tradição da História Social e que o afastaram das novas temáticas e análises teóricas.

II.
Uma das questões teóricas que parecem ter marcado a obra de E.P. Thompson foi a sua procura por novas “metáforas” que substituíssem a de “base-superestrutura”. Para isto, centrou-se na análise da consciência da classe operária - mais precisamente no processo de constituição da mesma - apelando para a subjetividade, a relação entre as classes, a cultura e os processos formativos e constitutivos da dita classe.[2]
Nesta procura de uma mediação possível, Thompson achou na experiência a solução prática para analisar comportamentos, condutas e costumes na sua relação com a cultura - na realidade com culturas específicas - com conteúdos de classe, histórica e geograficamente datados - a classe operária ou os trabalhadores rurais na Inglaterra do século XVIII e do início do XIX. A experiência aparece recorrentemente na sua obra, denotando tempo e, portanto, dando à classe uma dimensão histórica. Classe é, para Thompson, um fenômeno histórico composto por uma multidão de experiências em relação umas com as outras e, num constante fazer-se, e não uma categoria analítica ou estrutural, (Thompson, 1987: 11 e 12).
Entre os objetivos de E.P. Thompson estavam os de mostrar como esta diversidade aparente é parte de uma experiência comum, e, por outro lado, como a ‘exploração’ não é só um conceito político-econômico de origens marxistas com fins moralizantes, mas um fato sentido, vivenciado, pelos que o experimentam. (Kaye, 1984: 180, 181 e 185).
Na busca de novas metáforas para substituir a de base-superestrutura valeu-se da relação consciência social - ser social: o ser social determina a consciência social. Melhor ainda, vamos colocar nas palavras do próprio autor:
A experiência de classe é determinada, em grande medida, pelas relações de produção em que os homens nasceram - ou entraram involuntariamente. A consciência de classe é a forma como essa experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, idéias e formas institucionais. Se a experiência aparece como determinada, o mesmo não ocorre com a consciência de classe.” (Thompson, 1987: 10)[3]
Para E.P. Thompson, a determinação seria feita de maneira direta sobre a experiência - e não de forma direta sobre a consciência social -, que uma vez tratada em termos culturais pelo sistema de idéias, valores, instituições e tradições próprias de um determinado grupo social, nos daria uma nova experiência, que é a que, agora sim, determina - exercendo limites e pressões - a consciência social. Os termos culturais nos dão as peculiaridades históricas, e até geográficas, da consciência social. A mediação, então, seria uma série de momentos intermediários entre o Ser e a sua constituição como consciência.
É necessário fazer mais uma ressalva sobre o conceito de experiência e refere-se ao uso do mesmo na filosofia. O que os filósofos chamam de experiência são os “sentimentos nus ou crus” ou sensações, embora os kantianos chamem assim ao imediatamente percebido. Um terceiro uso de experiência seria o daqueles que usam essa palavra para designar a retificação da compreensão prévia da realidade, ou seja, a noção dialética da experiência como negação de erros prévios, como acontece com Hegel e Hans-George Gadamer. Nesta terceira visão, experiência é vista como uma forma histórica de entendimento mais do que alguma coisa imediata, mediando o conceito e o particular concreto, aquilo que podemos conhecer mediante, justamente, a experiência (Jay, 1989: 38 e 39). Esta última é justamente o sentido dado por E.P. Thompson à experiência.
O caráter histórico e cultural da experiência gera uma série de desconfortos e dificuldades na hora de aplicar o método thompsoniano a outras realidades ou casos concretos. As complicações próprias do seu método geraram algumas críticas. Algumas o têm considerado como um culturalista – como o marxismo anglosaxónico influenciado pelo marxismo continental.[4] O culturalismo está marcado pela centralidade da cultura e da consciência que, embora mantendo a clássica dialética marxista entre ser e consciência, a mesma é tratada “experimentalmente”, analisando as formações sociais a partir da experiência. No culturalismo existe um interesse preponderante pela cultura e as lutas conscientes, mas sem relacioná-las com as estruturas nas quais estão contidas.
Estas críticas baseiam-se na falta de compreensão de E.P. Thompson do processo de industrialização no seu conjunto, a falta de análise das classes possuidoras, e, inclusive pela celebração de uma classe operária de tipo corporativa e isolada, o que se deveria a que a “... formação da consciência de classe está na integração da classe trabalhadora em um sistema de falsa consciência...” (Nairn, 1982: 185). Estes questionamentos vêm da falta de percepção do processo histórico a partir da ausência dos estudos da base (e a importância excessiva da superestrutura, além da forma do uso da teoria nos escritos thompsonianos).[5]
As críticas à perspectiva “culturalista” podem ser compreendidas dentro da tradição marxista apegada aos textos da maturidade de Marx e ao estruturalismo reinante nas décadas de 60 e 70, contrários às posições humanistas dos primeiros escritos de Marx e Engels, do tipo das seguidas por E.P. Thompson. Seja que reclamasse dos silêncios do marxismo sobre as mediações culturais e morais ou pelas objeções feitas a Das Kapital, pelo estudo intensivo do capital e não da lógica do capitalismo (Trimberger, 1986: 217-219), isto não podia deixar de levantar recriminações ao estruturalismo marxista.
A polêmica com os estruturalistas rendeu o principal trabalho teórico de E.P. Thompson: A miséria da teoria, centrado na defesa do materialismo histórico nos termos dos escritos da juventude de Marx - como a Ideologia Alemã, A Miséria da Filosofia e o Manifesto Comunista -, em oposição aos textos usados pelos marxistas estruturalistas - O Capital, os Grundisse, e a Introdução geral à crítica da economia política - que considerou um retrocesso com respeito à obra anterior de Marx (Thompson, 1981: 93 a 117, especialmente p. 100 e 249-250). A Miséria é uma tentativa de definir mais firmemente a questão da experiência, de defender o trabalho do historiador e de resgatar a Engels, o “velho palhaço”, do ostracismo, responsável pelo desvio reformista como tinha sido apresentado pelos seus rivais. Mas este trabalho centra-se, principalmente, no ataque a Althusser, a partir de acusações de stalinismo (Thompson, 1981: 118 a 139, especialmente p. 131 a 133)[6] e delineando duas tradições divergentes no marxismo, o materialismo histórico, na qual ele próprio se situa, e o stalinismo-estruturalista, Althusser e os seus epígonos britânicos como Perry Anderson e Tom Nairn.
Pouco se pode esperar que tamanho esforço dera em algo mais do que na consolidação de duas trincheiras com posições fixas à espera do assalto final - as metáforas militares pairam o debate, impossibilitando o diálogo entre ambas as posições. O engajamento de E.P. Thompson na disputa refere-se a continuação do seu projeto anti-stalinista. Este iniciou-se em 1956, data do seu afastamento do PC britânico como forma de protesto pelo apoio do mesmo à invasão da Hungria pela URSS. Neste caso, então, o estruturalismo corresponderia a uma determinada etapa do marxismo - a da guerra fria - marcada pelo conservadorismo dos PC nacionais e o apoio à URSS no seu avanço na Europa Oriental e com a supressão das liberdades democráticas. Portanto isso tinha que ser abandonado pela tradição marxista e seria libertado e superado pelo socialismo humanista que ele propiciava (Kaye, 1984: 213-215)[7].
A capacidade como polemista de E.P. Thompson liquidaram um inimigo que já estava em retirada dando-lhe, então, o golpe final. Porém, a vitoria de E.P. Thompson sobre Althusser não teve como conseqüência a entrada em cena de um humanismo socialista triunfante. Esteve acompanhada de um abandono quase completo das questões teóricas, não só na historiografia marxista, mas em toda a linha da história social.
Como generalizar a partir da contingência? É possível construir modelos a partir só dos dados, sem teoria? Thompson coloca a História como o absoluto, uma espécie de Aleph no qual todas as explicações possíveis estão contidas, como anteriormente Althusser o tinha feito com a Teoria. Vitoria a la Pirro para um marxista - ainda que heterodoxo -, que para vencer a disputa sacrificou a sua teoria, colocando-se nu diante do inimigo externo.

III.
Será a característica romântica da obra de Thompson o que lhe têm dado tanta repercussão? Como explicar que apesar de tantas respostas e questionamentos permanece a sua influência na historiografia dos últimos 30 anos? É muito difícil achar uma explicação para isto partindo somente da sua obra. Cultuado e rejeitado com a mesma paixão, a sua obra continua estimulando os historiadores e cientistas sociais, tanto que E.P. Thompson é o historiador mais citado em todo o mundo e é um dos 250 autores mais citados em todos os tempos[8].
Neste processo de “canonização”, o que na realidade, e seguindo as categorias católicas, só auxiliou na sua “beatificação”, é interessante frisar que participaram alguns dos seus atuais críticos. No momento da “consagração”, e a mesma tem muito a ver com a apropriação que foi feita da sua obra, The making of... era usado por ativistas universitários, para vincular o mundo acadêmico à comunidade, para ser lido em cursos, na rede de educação de adultos e em grupos de discussão (Scott, 1988: 69)[9].
Para poder compreender o porquê de tanta preocupação com o nosso “herói” tentaremos fazer um pequeno insight sobre a questão da teoria em E.P. Thompson, mostrando alguns questionamentos e análises dos autores revisionistas[10]. Seria impossível seguir o fio da meada, portanto, vou ser parcial na seleção dos autores e das questões abordadas.

IV.
Até o momento, apresentamos algumas das questões que tiveram E.P. Thompson no centro da cena dos debates teóricos durante as décadas de 60 e 70, e no início da de 80. Nos mesmos, a sua presença e a defesa dos seus argumentos estiveram relacionados com as questões políticas por ele representadas. Na sua luta contra o stalinismo, tudo o que estivesse relacionado com este, ou o que ele achava que estava relacionado, devia ser combatido. Em torno destas questões, estiveram posicionadas as suas brigas com o estruturalismo e o funcionalismo. Estas disputas acabaram desgastando o debate e as partes chegaram a estabelecer um ponto sem retorno. Neste processo, o corpus teórico do marxismo cresceu significativamente, sendo que as principais contribuições, e as mais heterodoxas, vieram do chamado (e nunca aceito como tal) marxismo culturalista. Durante o período, o marxismo culturalista atingiu a hegemonia da história social[11].
Mas, na década de 80 e no que vai da de 90, os desafios para E.P. Thompson e os culturalistas foram lançados por novas tendências vindas de outras áreas – primeiro, da antropologia e depois, com maior agressividade, da lingüística - e teorias - principalmente do pós-estruturalismo. Os historiadores ligados ao Linguistic turn acusaram a Thompson de carente de teoria e de professar uma história social démod[12]. O primeiro questionamento não é novo e o segundo parece agressivo demais. Este adjetivo de culturalista complicou a compreensão da obra de E.P. Thompson, tanto que até no seu último livro – Costumes em comum – tentou esclarecer o que era cultura para ele, ou melhor ainda como ele utilizava o conceito de cultura. Desta forma, tentava diferenciar-se da incorporação a-crítica pelos historiadores do conceito de cultura popular tal como é utilizado por determinados antropólogos[13]. Certas correntes da antropologia tem uma “perspectiva ultraconsensual” da cultura. Para escapar desta armadilha, a saída reside na contextualização da cultura popular. Assim, tornou-se um conceito mais concreto e utilizável “... mas localizado dentro de um equilíbrio particular, de relações sociais, um ambiente de trabalho de exploração e resistência à exploração, de relações de poder mascaradas pelos ritos do paternalismo e da deferência.” (Thompson, 1998: 17).
Porém, os mesmos nos levam a perguntar: o que estes autores esperavam achar em E.P. Thompson? Ou melhor, podiam eles esperar alguma coisa de Thompson? Desta segunda maneira, podemos alcançar uma resposta mais clara.

V.
Vamos apresentar algumas das diversas questões levantadas pelos autores revisionistas: as feministas questionaram a análise, ou a falta dela, feito da participação da mulher na construção da classe operária; o conceito de experiência também foi criticado pela proximidade do mesmo com a contingência, a empiria, e ainda de manter elementos economicistas; também a experiência nos leva ao uso do conceito de classe, visto como essencialista e totalizante, e que nos impede de perceber a diversidade tanto nos grupos sociais quanto nos distintos subgrupos que o integram; outra das questões está vinculada com o uso de categorias marxistas e, portanto, imersa dentro de uma das grandes narrativas. Mas E.P. Thompson tem elementos em comum com as novas tendências, principalmente o estudo e o uso da linguagem dos grupos subalternos e a questão da diversidade.
Embora na obra de E.P. Thompson achemos estudos dedicados à linguagem e ao discurso, a mesma tem sido questionada pelos historiadores próximos do Linguistic turn. Isto deveu-se, em grande medida, à forma em que a linguagem e o discurso entraram no seus trabalhos. O conceito de ‘experiência’ apresenta com clareza este tipo de críticas. Segundo as mesmas, a experiência não se constitui previamente à linguagem, mas é constituído ativamente por esta. Mas o programa do materialismo histórico mantido por E.P. Thompson é oposto ao idealismo, ao subjetivismo e ao reducionismo (neste caso ao discurso) revisionista, dado que a linguagem é incorporada a uma ampla formação analítica que compreende a agência e a estrutura, o dito e o feito, o consciente e o inconsciente e, ainda, as intenções e conseqüências da ação individual e coletiva (Kirk, 1994: 222).
Porém, existem algumas semelhanças entre Thompson e os autores revisionistas, principalmente os do Linguistic turn. Primeiro, na importância dada ao poder da linguagem, a possibilidade da mesma de estruturar a realidade, de ser o canal da agência e, por último, por funcionar como o palco para os conflitos fundamentais. A diferença com os revisionistas é dada pela intenção destes últimos de querer suplantar o materialismo histórico no qual se baseia a análise thompsoniana e a ênfase na determinação da experiência de classe. Finalmente, pelo apelo a terminar com a História Social, tal como foi praticada nas últimas décadas, não só por Thompson, mas pelas diversas escolas que nele se basearam (Steimberg, 1996: 194).
Neste sentido, não podemos esquecer que parte da obra de E. P. Thompson esteve dedicada às questões vinculadas às formas em que foi articulado um discurso próprio dos trabalhadores ou dos plebeus, e ainda de como o discurso do patriciado (ou da burguesia) era re-apropriado e resignificado pelos plebeus (e depois pela classe operária), fosse para contestar a economia política clássica, construindo uma economia moral própria, ou usando as normas, tradições e leis em seu próprio beneficio (Thompson, 1987; 1979; 1998), ou seja, que as questões da linguagem não ficaram de fora do horizonte thompsoniano. Isto pode ser visto no livro The making of the english working class.
Neste estudo, a classe existe à medida que existe o sentimento e a articulação de uma identidade, no lugar de uma identidade objetiva dos seus interesses. Sem consciência de classe não há classe. A consciência de classe não é deduzida por Thompson em termos econômicos. Então ele a procura na construção histórica da experiência, na elaboração de um vocabulário e de uma organização conceptual através da qual a sua identidade, como classe, poderia ser pensada e atualizada (Sewell Jr., 1990: 54).
A questão do vocabulário, e de um discurso próprio dos trabalhadores, é central no estudo da formação da classe operária inglesa. Em primeiro lugar, porque a classe operária define-se a si mesma como classe diferenciando-se conceptualmente da classe média. Para isto, desenvolve uma crítica própria da sociedade capitalista e das relações de propriedade, o que vai elaborando um discurso de classe. Mas isto acontece no mesmo momento da constituição de um movimento da classe operária, com as suas instituições (jornais, clubes, sindicatos, etc.). Estas instituições são o núcleo em torno das quais os operários mobilizam-se para lutar pelas suas reivindicações. São nestas instituições que o discurso de classe cresce e se expande e, ao mesmo tempo, dá forma e motivação ao movimento da classe operária. Existe, então, uma forte inter-relação entre o movimento da classe operária e o seu discurso.
O discurso da classe operária já formada, do modo como é apresentado por E.P. Thompson, parte de um discurso preexistente. Seguindo com a obra Formação..., no prefácio ele já faz um esclarecimento que especifica que a consciência de classe não é o reflexo da exploração. A própria organização do livro apresenta esta transformação, como apresenta William Sewell Jr.: “as tradições políticas e religiosas descritas na Parte Um, quando submetidas à experiência da exploração descritas na Parte Dois, são transformadas via as agitações políticas descritas na maior parte da Parte Três na ‘consciência de classe’ descrita no capítulo final” (Sewell Jr., 1990: 69). Isto implica que, para poder estabelecer ou conhecer o discurso da classe operária, tem que se conhecer suas raízes e componentes preexistentes.
Mas isto nos leva, se concordamos com que a classe se faz-desfaz-refaz, a que vários discursos - às vezes rivais, às vezes complementares - estão atuando sobre a classe operária e que estes convivem na mesma. Dependendo da conjuntura, um ou outro tornou-se o dominante ou o principal, o que não teria invalidado que outros setores que compõem a classe operária tivessem os seus próprios discursos - as mulheres, os irlandeses, os radicais, os metodistas, etc. - e que os mesmos não só coexistissem na mesma classe, como o fazem na mesma pessoa (Sewell Jr., 1990: 72).
VI.
Como mostramos, se o trabalho de E.P. Thompson teve pontos conflitantes com a obra dos autores estruturalistas, também as teve com os pós-estruturalistas. Porém temáticas e preocupações similares também existiram, como é o caso do estudo do discurso da classe, que aparentemente seria um patrimônio dos historiadores chamados de revisionistas.
O engajamento anti-stalinista o levou a fortes choques com aqueles que ele identificou como defensores da perspectiva stalinista, mesmo que suas posições políticas não fossem pró-PC-URSS. Isto levou a que Thompson estivesse orientado à depuração do marxismo das suas implicações estruturalistas, tanto na sua produção especificamente histórica quanto na teórica. Thompson identificava o estruturalismo como a teoria própria do marxismo da guerra fria e, portanto, funcional ao stalinismo e ao mecanicismo do mesmo, que depreciava o humano e a diversidade de experiências.
Neste engajamento, muitos dos seus intentos de provar o erro das premissas do seu adversário o levou a contradições e oposições consigo mesmo e, como já vimos, com o seu anti-stalinismo. Mas, por outro lado, a sua busca permanente pela ampliação e superação do corpus estabelecido no interior do marxismo permitiram a introdução de novos conceitos e preocupações no interior da história social.
O humanismo thompsoniano é também parte da tendência ao estudo da diversidade dentro da história. Um exemplo disto é a própria epígrafe que colocamos no início deste trabalho. Na mesma, faz-se referência à procura pela experiência de cada um dos sujeitos, coletivos ou individuais, sendo que esta, e ainda a individual, é central no seu próprio projeto historiográfico e no despertar da consciência das pessoas para o socialismo. Para isto, é necessário o reconhecimento de um passado em comum de lutas contra a exploração. Para sua superação, seria necessário resgatar uma série de tradições e valores que dariam sentido a essa consciência em comum.
Mas nesta procura da diversidade, alguns setores não ficaram especialmente satisfeitos com a explicação de Thompson sobre o surgimento da classe operária. As feministas, por exemplo, reclamam que o papel da mulher não teria sido analisado de acordo com sua importância. Embora os estudos de gênero alertem para a diversidade e as divisões internas dentro da classe operária, as feministas questionam o discurso sobre o sexo. Uma explicação possível é que E.P. Thompson foi parte da tradição socialista e igualitarista na qual a diversidade e a complexidade da diferença sexual é vista como ‘reacionária’ e ignora a mulher na constituição e construção da classe operária. Segundo Joan Scott, esta tradição promete igualdade, mas não reconhece o uso da diferença (SCOTT, J., 1988: 83). Mas esta questão foi atendida por E.P. Thompson, e ainda por outros teóricos e historiadores sociais, que têm se mostrado mais preocupados pela multiplicidade das vivências operárias ou plebéias, dado que nesta multiplicidade as diferenças não teriam dominado umas sobre as outras, prevalecendo a experiência das relações de produção (Thomspon, 1998: 20).[14]
A obra de E.P. Thompson produziu mais confusão do que esclarecimento, mas talvez justamente esta falta de clareza é o que lhe conferiu o caráter de texto obrigatório na história social e ainda entre os historiadores revisionistas. O uso imaginativo da linguagem e, principalmente, a sua riqueza de idéias parecem ter conseqüências duradouras na história social, e ainda o questionado conceito de experiência continua parecendo atrativo para aqueles que se opõem às concepções aparentemente consolidadas.
Para finalizar, retornamos à primeira das epígrafes. Esse resgate do passado da multiplicidade das experiências é uma tentativa para revalorizar as perdas dos grupos subalternos, rememorando a importância das posições históricas, valores e tradições que se transformaram em instrumentos para compreender conflitos e processos, e que apesar das críticas feitas, e aqui comentadas de estruturalistas e revisionistas, não podem ser nem esquecidas nem abandonadas.

Referências bibliográficas
ANDERSON, Perry. Teoría, política e historia: un debate com E.P. Thompson. México: Siglo XXI, 1985.
BURKE, Peter. Cultura Popular na Idade Moderna: Europa 1500-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
CHANDAVARKAR, Rasnarayan. The making of the English working class: E.P. Thompson and the Indian History. History Workshop Journal, 43, 1997.
COHEN, Gerald Karl Marx’s theory of history: A defence. Princeton: Princeton University Press, 1978.
COOPER, Frederick. Work, class and empire: an african historian’s retrospective on E. P. Thompson. Social History, v. 20, n. 2, mai. 1995.
HALL, Stuart. En defensa de la teoría. In: SAMUEL, Raphael (org.). Historia popular y teoría social. Barcelona : Crítica, 1984.
JAY, Martin. Force fields. Salmagunchi, n. 81, inverno 1989.
JOHNSON, Richard. Contra el absolutismo. In: SAMUEL, Raphael (org.). Historia popular y teoría social. Barcelona : Crítica, 1984.
JOHNSON, Richard. Thompson, Genovese and socialist humanist history. History Workshop Journal, n. 6, outono 1978.
KAYE, Harvey J. The british marxist historians. Oxford: Polity Press, 1984.
KIRK, Neville. History, language ideas and post-modernism. In: Social History, v. 19, n. 2, mai. 1994.
LEVINE, David. Proto-nothing. Social History, v. 18, n. 3, out. 1993.
MARX, Karl. Prólogo a la Contribución a la Crítica de la Economía política (1859). In: MARX, K. Introducción general a la crítica de la Economía Política/1857. Córdoba: Pasado y Presente, 1970.
NAIRN, Tom. A classe trabalhadora de Inglaterra. In: BLACKBURN, Robin (ed.). Ideologia na Ciência Social. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
PALMER, Bryan. Edward Palmer Thompson objeções e oposições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996
SCOTT, Joan W. Women in The making of the English working class. In: SCOTT, Joan W. Gender and the politics of History. New York: Columbia University Press, 1988.
SEWELL JR., William H. How classes are made: critical reflexions on E. P. Thompson’s theory of working class formation. In: KAYE, Harvey, McCLELLAND, Keith (eds.). E.P. Thompson critical perspectives. London: Polity Press, 1990.
STEEDMAN, Carolyn The price of experience: Women and The making of the English working class. In: Radical History Review, n. 59, 1994.
STEIMBERG, Marc W. Culturally speaking: finding a commons between post-structuralism and the thompsonian. In: Social History, v. 21, n. 2, mai.1996.
THOMPSON, E.P. A formação da classe operária inglesa. I. A árvore da liberdade. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1987.
THOMPSON, E.P. A economia moral revisitada. In: ____. Costumes em comum. Estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
THOMPSON, E.P. Costumes em comum. Estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998
THOMPSON, E.P. La política de la teoria. In: SAMUEL, Raphael. Historia popular y teoría social. Barcelona: Crítica, 1984.
THOMPSON, E.P. Miseria de la teoria. Barcelona : Crítica, 1981.
THOMPSON, E.P. Notas sobre o texto. In: ____. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas : UNICAMP, s/d. (“Textos didáticos”)
TRIMBERGER, Ellen Kay. E.P. Thompson: Undestanding the process of history. In: SKOCPOL, Theda. Vision and method in historical sociology. Cambridge: Cambridge University Press, 1986.
WOOD, Ellen Meiksins. Falling through the cracks: E.P. Thompson and the debate on Base and Superestructura. In: KAYE, Harvey, McCLELLAND, Keith (eds.). E.P. Thompson critical perspectives. London: Polity Press, 1990.
[2].- É interessante ver em Thompson que a “burguesia” aparece como formada e pronta, ainda que interagindo com a classe operária ou o campesinato inglês. Como ele questiona que em Marx é a industrialização que produziu o operariado, na sua obra também a industrialização aparece com o Deus ex-machina que produziu o industrial.
[3].- Comparar com a forma em que Marx (1970: 35-6) estabelece a determinação: “El modo de producción de la vida material determina [ben­dingen] el proceso de la vida social, política y espiritual en general. No es la conciencia del hombre la que determina su ser, sino por el contrario, el ser social es lo que determina su conciencia”.
[4].- Os autores que assim o tem considerado são Anderson, 1985; Cohen, 1978; Johnson, 1978; Nairn, 1982. Thompson e seus defensores rejeitaram ser designados como culturalistas. Wood, 1990: 54.
[5].- Ver a queixa do próprio Thompson com respeito aos seus críticos pelo uso da categoria gramsciana de hegemonia e de modelos. Cf. Thompson, s/d.
[6].- Ele esquece que Althusser toma de Engels alguns conceitos como o de “autonomia relativa”, entre outros.
[7].- Para maiores precissões sobre o engajamento político de Thompson no período do debate, ver Palmer, 1996: 88 a 107.
[8].- Segundo mostra Eric Hobsbawm, na orelha do livro já mencionado de Bryan Palmer, citando o Arts an Humanities Index. As seqüelas de sua obra no Brasil e na Argentina não são difíceis de acompanhar, sobre tudo na área da história do trabalho e da cultura. Repercussões ainda mais afastadas para nós aparecem em Chandavarkar, 1997 e Cooper, 1995. Conhecendo a biografia e bibliografia de Thompson, a surpresa diminui quando refere-se à India, porém estamos abarcando o mapa quase que de extremo a extremo.
[9].- A mesma visão é apresentada por Steedman, 1994: 111.
[10].- Chamo de “revisionistas” os autores pós-modernos/pós-estruturalistas/feministas, para assim poder abranger as distintas escolas e procedências. Revisionistas parece um termo adequado se considerada a paixão por deconstrutir e questionar o dado como certo e imutável.
[11].- Os momentos finais e de ruptura em tais debates podem ser encontrados em três artigos que aparecem reunidos num livro com o título de El Culturalismo. Debates en torno a Miséria de la Teoría. Os artigos são: Hall, 1984; Johnson, 1984 e Thompson, 1984. A discussão bem pode ter continuado, porém o nível de agressividade das exposições, num debate organizado pelo History Worshop, tornou impossível uma continuação do mesmo sem preconceitos de ambas as partes.
[12].- A ‘falta de teoria’ foi o argumento utilizado para rejeitar o artigo “Hunting the Jacobin fox”, publicado postumamente em Past and Present, de 1994 (n. 142). A apreciação de que o seu método “...parece um tanto óbvio e um chapéu velho e inútil...” corresponde a Levine, 1993: 381. Ambos são exemplos do seguimento das modas e da intolerância das mesmas.
[13].- O diretamente aludido por E.P. Thompson é Peter Burke. Vide Burke: 1989.
[14].- Para estas colocações Thompson baseou-se na obra de Antonio Gramsci.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

PERSPECTIVAS PARA UMA HISTORIOGRAFIA CULTURAL

Não é nada fácil falar sobre cultura e sobre história cultural, já que tudo hoje parece impregnado e medido pela cultura. A "cultura" transformou-se na categoria chave para a compreensão do mundo contemporâneo e, como reconheceu recentemente Jameson, até mesmo os níveis políticos e ideológicos devem ser desemaranhados de seu modo primário de representação que é cultural. Peter Burke, no texto da sua palestra, começa exatamente por reconhecer esta dificuldade - dificuldade que temos até em definir os territórios, já que as tradicionais fronteiras de pesquisa foram quebradas - e, prefere pela menção a dois autores "clássicos" da história cultural: Burckhardt e Huizinga.
Elias Thomé Saliba

Das várias maneiras de aquilatar o reconhecimento destes "clássicos" da história da cultura, a mais sintomática é verificar o número de vezes que foram e ainda são citados, todas às vezes na qual se trata desse tema. Não por coincidência, portanto, que, da mesma maneira que Peter Burke, E.H. Gombrich, na sua famosa conferencia de 1967, sobre História cultural, também se refira reiteradamente às obras, senão clássicas, pelo menos fundadoras, de Burckhardt e Huiziga. [Gombrich, 1969] Também não é coincidência que Gombrich também partilhe do mesmo dilema - talvez o principal - apontando para uma história cultural: "como resistir à fragmentação sem voltar ao pressuposto do Zeitgeist ou, da unidade cultural"?
Gombrich descreve este afastamento dos "clássicos" como um abandono da metafísica hegeliana e analisa a construção de uma (nova) historiografia cultural por sobre os escombros dos alicerces do sistema hegeliano. É a busca difusa desta unidade cultural, que ele aponta nas obras de Burckhardt e na do seu seguidor, Huizinga - que constitui a tarefa teórica de uma história da cultura para estes "clássicos". Esta tarefa, observa Gombrich, guarda, estreitas semelhanças com o edifício hegelianos da história cultural, e como o seu corolário, o método de exegese: "tendo postulado a unidade de todas as manifestações de uma civilização", argumenta Gombrich o método consiste em tomar diversos elementos da cultura, por exemplo, a arquitetura grega e a filosofia grega, e perguntar como poderá demonstrar-se que são exemplos do mesmo espírito. No fim de uma tal interpretação de haver sempre triunfante QED euclidiano, pois foi essa mesma tarefa que Hegel atribui à história: descobrir em cada factual o principal geral que lhe subjaz." [Gombrich, 1969: 21-33]
A observação de Gombrich sobre os traços hegelianos nos dois autores considerados como "clássicos" da historiografia cultural, vem bem a propósito de identificar, por trás dos vários entendimentos de uma história cultural, as diferentes concepções teóricas e diferentes caminhos metodológicos. Podemos notar que é difícil discordar dos quatros aspectos, assimilados por Burke, que inviabilizam uma aceitação contemporânea de uma história cultural nos moldes "clássicos". Ninguém defende hoje, pelo menos de forma programática, uma história da cultura "suspensa no ar", ou seja, carente de um exame mais sólido dos entrecruzamentos de uma história social, embora também seja fácil verificar as dificuldades de praticar uma história cultural que resista às tentações de "dissolver" o social. O mesmo pode ser dito com relação ao pressuposto da existência de um "espírito da época", incluindo, como bem aponta Burke, a ingênua noção de uma homogeneidade cultural. A própria noção de Cultura, para além da "grande narrativa da civilização ocidental", alargou-se em direção de outras dimensões e outros territórios. Assim, só podemos concordar com tais aspectos, assimilados na palestra de Burke, com única ressalva de que, para nós, eles se constituem mais em sintomas do que propriamente a essência das questões presentes na proposta de uma renovada historiografia cultural.
O problema é que por trás destes sintomas está toda uma gama das mais concepções teóricas - e a mudança de enfoque da história cultural tem mais a ver com uma alteração do papel da teoria no trabalho historiográfico. Gombrich tem razão quando argumenta, no texto já citado, que a historiografia cultural procurou encontrar seus caminhos através do esforço em abandonar os traços metafísicos, presentes tanto no difuso hegelianismo e nos seus desdobramentos, quanto nas correntes marxistas posteriores. O mais forte traço, por assim dizer, "metafísico" estava expresso numa ênfase no dever ser (mais no que no ser) e em explicações, implícita e explicitamente teleológicas. Quase toda a produção historiográfica dos anos oitenta (falamos sempre em termos de tendências) foi, no fundo, uma crítica velada àquela concepção prescritiva, abstrata e, ao mesmo tempo normativa de Cultura, fundada em modelos. O conceito gramsciano de hegemonia - muito citado, pouco lido e ainda menos entendido na pratica historiográfica - de larga circulação na historiografia britânica do pós-guerra serviu de mote inspirador para muitos dos trabalhos mais importantes nesta área. Os historiadores da Cultura tratavam de emancipar-se de modelos que remetiam o social a outra coisa e não a si mesmo. A "cultura", com todo o seu arsenal simbólico e imaginário, passou a ser relacionada a uma totalidade histórica antes desprezada: como se formaram os mecanismos de dominação e de exploração entre os homens? Como estes mecanismos (ao nível do cultural) se confrontam, se difundiram e se perpetuam? Assim, os símbolos, as imagens, as mentalidades, as praticas culturais, foram consideradas como lugares de exercícios de poder, de dominação e de conflitos sociais.
Porque este retorno ao cultural era também sintoma de um cansaço com uma história saturada de estruturas, hierarquias, modos-de-produção, sistemas, subsistemas, modelos - enfim, da história como um processo sem sujeito. O operário fora das fábricas, a mulher pobre, os vadios, as prostitutas, as feiticeiras, o escravo urbano, os marginais, moleiros perseguidos, bizarros guerreiros medievais, camponeses encalacrados em processos, escritores e artistas obscuros - foram se incorporando como temas conspícuos da historiografia. Compreender como os homens do passado se compreendiam, como eles se constituíam a si mesmos, à sua totalidade e a sua própria história - tornou-se uma nova missão para os historiadores. O passado passou a ser visto como um feixe de práticas discursivas, como uma sucessão de versões que se sobrepunham umas às outras numa regressão quase infinita. Os objetos, antes inscritos e recortados de uma história social, fragmentaram-se e dissolveram-se num difuso território da indeterminação.
A própria dimensão cultural ganhou novos contornos: modo de expressão e de auto-elaboração de grupos sociais no correr da história, tornou-se, portanto, também de conflitos, de lutas, de possíveis não-equivalentes. A cultura passou a ganhar, nos livros de história, os contornos daquilo a que Sartre apenas vislumbrou, chamando de dimensão "prático-inerte" da vida humana, salientando, numa alusão famosa que, afinal, na história, "não se toma a Bastilha todos os dias". Assim, a história cultural, para além dos obstáculos, apontados por Burke a partir dos "clássicos", e dos quais ela tenta se livrar, pode ser geralmente redefinida como um estudo dos processos e práticas das quais se constrói um sentido e se forjam os significantes do mundo social.
Embora concordamos com o diagnóstico de Burke a respeito da história cultural, é necessário, portanto, acrescentar este diagnóstico, todas estas alterações do próprio estatuto teórico na compreensão da cultura e da história. Com a perda da confiança nas certezas da quantificação, com o abandono dos recortes ditos "clássicos", sejam geográficos ou temáticos; com o questionamento das noções ("mentalidades", "cultura popular", etc.) ou das categorias ("classes sociais, classificações socioprofissionais, etc.); com a desconfiança nos modelos interpretativos (estruturalistas, marxistas, demográficos, etc.), a História Cultural obriga-se hoje, cada vez mais, a buscar novos caminhos.(Chartier, 1995)".
Também consideramos problemático descrever (?), como se faz de passagem, a abordagem da atual história cultural como "antropologia histórica ou, história antropológica". E isto pelo simples fato de que a noção de cultura e, por conseguinte, suas respectivas derivações teóricas entre antropólogos, envolve uma diversidade de abordagens tão (ou mais) polêmica quanto entre os historiadores. Ou a noção de cultura, em Clifford Geertz e Lévi-Strauss, seria a mesma e partiria dos mesmos pressupostos teóricos?
Embora a corrente de maior prestígio entre os historiadores tenha sido a antropologia simbólica, associada à obra de autores como Mary Douglas, Victor Turner e Clifford Geertz, é necessário reconhecer estas diferenças na abordagem da própria categoria "cultura" - e isto, para além das simples alternativas entre globalidade e fragmentação. Os métodos etnográficos dessa vertente da antropologia cultural, fundados na interpretação dos elementos culturais, essencialmente como textos ou, como atos simbólicos, embalaram o trabalho de muitos historiadores. A extensão da noção de texto para todos os objetos e temas da história cultural levou Geertz, um dos antropólogos mais notáveis dessa corrente a falar numa "Nova Filosofia", que ele definiu como estudo da significação fixada e separada dos processos sociais que a engendraram". Os historiadores, salvo raríssimas exceções, partiram para transformar tudo em texto e encontrar no passado "estruturas de significado", "gabaritos simbólicos", sistemas simbólicos e outras variações. Comportamento não-escrito de resistência à mudança? Discurso político? Festas e folguedos comunitários? Crenças, tradições orais ou rituais? Tudo poderia ser visto pela grade da textualização, tudo poderia ser tratado como texto, ou seja, como um conjunto potencialmente significativo. Pretensamente munidos de um método, chamado de descrição densa, os historiadores acabam por passar ao largo da singularidade dos objetos, produzindo generalidades... A descrição densa de Geertz é uma miscelânea, define um antropólogo, é aquilo que todo antropólogo, munido de boas intenções tentou fazer depois das críticas do objetivismo, do colonialismo e do etnocentrismo. [Gomes Jr., 1992]
Afinal, todos desejamos que a antropologia histórica seja bem-vinda para a historiografia cultural, mas, com a condição do historiador fazer funcionar, como disse Thompson, aquela vigilante casa de cambio teórico, na alfândega epistemológica, ou seja, qualquer diálogo interdisciplinar só poderá ser legitimo se incorporar uma discussão de teoria e de métodos.
Peter Burke exemplifica os novos dilemas da historia cultural, tecendo comentários em torno das obras de Simon Schama e de Nicolau Sevcenko. A caracterização do livro de Sevcenko como "livro de fragmentos" parece-nos ligeira e, em todo caso, procede de uma leitura equivocada. Em primeiro lugar, Orfeu extático não é um livro sobre a Semana de Arte Moderna de 1922, mas um variadíssimo painel dos impasses da modernidade cultural brasileira, tendo como centro a urbanização acelerada de São Paulo, nos anos vinte. Nunca será demais lembrar - pois o silencio da critica a este respeito é assustador - que Orfeu Extático é ainda uma releitura original do modernismo paulista, através do seu ambíguo num cenário de desenraizamento e fragmentação que converge, rapidamente, para repotencializar atitudes nacionalistas e mitos de mobilização coletiva. Não custa lembrar que a semana de 1922 é caracterizada, no mesmo livro como um tour de force de propaganda em favor da arte moderna em São Paulo e apenas mais um evento entre a extensa programação de festas cívicas que aconteciam na cidade, inclusive com patrocínio e o incentivo do governador do Estado. Em todos os capítulos há uma sutil linha interpretativa, mostrando como a urbanização acelerada e a velocidade tecnológica conjugavam-se com símbolos regressivos e arcaicos, próprios de uma geração que não tinha mais um passado - e partia numa busca sôfrega pelas raízes tradicionais paulistas de bandeirantes, "caipiras estilizados", forjando todo um imaginários de mitos, novos ou tradicionais. O livro, como um todo, constitui uma desmistificação da aura de ilusão presente no gesto pretensamente inovador dos nossos modernistas, mostrando-se que, por trás da forma, do vocabulário e do repertório de imagens, subsistia a mesma tônica idealista, nativista, nacionalista e militante. A ritualização das fantasias coletivas, expressa o mito do orfismo, impregnada toda a reconstrução desse cenário e - só não vê que não quer - possibilita, em extensão, repensar criticamente os mitos populistas na história cultural brasileira. [Saliba, 1993]
Encontro cultural, circularidade entre cultura erudita e popular e processo de cotidianização - apontados por Burke como índices de um ponto de vista novo para seu estudo sobre o renascimento, constituem-se, na verdade em desafios heurísticos para o historiador da cultura. Historiador que, hoje, mais do que nunca, e ao contrario dos tempos nos quais a procura do Zeitgeist é que dava o tom, encontra talvez a sua tarefa mais complexa na busca empírica dessas pluralidades culturais. Porque, em História cultural, ou talvez mesmo no conhecimento histórico tout cour, mais difícil do que fornecer a receita, é fazer o bolo sem desandar a massa... O historiador deve esforçar-se por superar, heuristicamente, duas das dificuldades mais comuns aos estudos culturais: sair das prisões interpretativas dos "contextos" econômicos ou sociais ou sócio-culturais que a tudo explicam (ou simplificam) e afinar seu diapasão (e sua sensibilidade) para aquilo que Michel De Certeau chamou de "artes de fazer", ou seja, para uma lógica específica de algumas manifestações "populares" - lógica marcada pela contradição e pela ambigüidade - características, não raro, impermeáveis à lógica racional. Afinal, a partir de quais perspectivas falam os historiadores da cultura popular? - perguntavam De Certeau e D. Júlia em conhecido artigo - argumentando "que as noções que tais historiadores se utilizam, para construir a sua rede de inventário, foram todas retiradas das categorias do saber ou, mais amplamente, da cultura "culta". [De Certeau, e Júlia, 1989]
Em suma, a história cultural transformou-se na principal fronteira dos estudos históricos na atualidade, exatamente, porque não há, a rigor, entradas privilegiadas nem exigências previas para o estudo das culturas. Exigências prévias que faziam parte das concepções totalizantes, de extensão hegeliana ou não, mas, sempre fortemente marcadas por categorias teleológicas que, afinal, viam a história como exemplo de evolução "progressiva" e de conjunto de toda humanidade. Neste caso, nem é preciso ser pós moderno, para continuar acreditando que o pensamento racionalista conduza, necessariamente, ao progresso humano...
________
Referências Bibliográficas:
Gombrich, Ernst. In search on Cultural History. Oxford: Oxford University Press, 1969.
Saliba, Elias Th. Cultura Modernista em São Paulo Estudos Históricos, 11: 128-132, 1993
Chartier, Roger, Faire de l’Histoire après 20 annes Le Monde des livres, 24.02.95, p.4.
Gomes Jr., Guilherme Simões. A hermenêutica cultural de Clifford Geertz .Margem, 1. 37-46, 1992.
De Certeau, Michel & Júlia, Dominique. A beleza do morto: o conceito de cultura popular In: Revel, J. A Invenção da Sociedade. Lisboa: Difel, 1989, p. 63-64.
Falcon, Francisco J. Calazans. A História Cultural. In: Rascunhos de História. Rio de Janeiro: Puc, 1991.
http://www.uem.br/~dhi/Rev_a02.htm

sábado, 25 de outubro de 2008

CRISE ECONÔMICA E FUTURO

DEPRESSÃO, UMA VISÃO DE LONGO PRAZO

Estamos nos movendo em direção a um mundo protecionista. Estamos nos movendo para um papel muito maior do governo na produção. Mesmo os EUA e a Grã Bretanha estão nacionalizando parcialmente os bancos e as grandes empresas moribundas. Nos dirigimos a uma distribuição conduzida pelo governo, que pode assumir modos social-democratas à centro-esquerda ou formas autoritárias de extrema direita.
Immanuel Wallerstein - La Jornada
Data: 22/10/2008

A depressão já começou. Alguns jornalistas, um tanto constrangidos, seguem perguntando aos economistas se talvez não estejamos só entrando numa mera recessão. Não creia neles nem por um minuto. Já estamos no começo de uma depressão mundial de grande envergadura com desemprego maciço em quase todas as partes. Pode assumir a forma de uma deflação nominal clássica, com todas as suas conseqüências para as pessoas comuns. É um pouco menos provável que assuma a forma de uma inflação galopante, que é somente uma outra forma de derrubar valores, inclusive pior para as pessoas comuns.
É claro que todo mundo se pergunta o que disparou essa depressão. Serão os derivativos, que Warren Buffett chama de "armas financeiras de destruição em massa"? Ou são, por acaso, as hipotecas subprime? Ou os especuladores do petróleo? Julgar culpas não tem importância real. Isso é concentrar-se na poeira, como dizia Fernand Braudel, dos eventos de curta duração. Se quisermos entender o que está ocorrendo necessitamos lançar um olhar amplo para outras temporalidades, que são muito mais reveladoras. Um é o dos vai-e-vens cíclicos de média duração. O outro é aquele das tendências estruturais de longa duração.
A economia-mundo capitalista teve, durante vários séculos, pelo menos duas formas de vai-e-vens cíclicos. Uns são os chamados ciclos de Kondratieff, que historicamente teriam uma duração de 50-60 anos. E outros são os ciclos hegemônicos, que são muito mais longos.
Em termos de ciclos hegemônicos, os EUA foram um adversário dessa hegemonia nos idos de 1873; conseguiu sua hegemonia depois de 1945 e vem declinando desde os anos 70. As loucuras de George W. Bush transformaram esse declínio lento em precipitado. E agora já estamos longe de qualquer retomada da hegemonia estadunidense. Entramos, como acontece normalmente, num mundo multipolar. Os EUA permanecem como potência forte, talvez a mais forte, mas continuará declinando em relação a outras potências, nas próximas décadas. Não há muito o que alguém possa fazer para mudar isso.
Os ciclos de Kondratieff têm uma temporalidade diferente. O mundo saiu da última fase B do ciclo Kondratieff em 1945, e então o retorno mais forte à fase A vem ocorrendo, na história do sistema-mundo moderno. Chegou ao seu clímax por volta de 1967-1973, e começou o seu descenso. Esta fase B foi muito mais longa que as fases B anteriores e seguimos nela.
As características de uma fase B de Kondratieff são bem conhecidas e coincidem com o que a economia-mundo vem experimentado desde os anos 70. As taxas de lucro nas atividades produtivas baixam, especialmente naqueles tipos de produção que tenham sido mais rentáveis. Em conseqüência, os capitalistas que desejem níveis de lucro realmente altos se inclinam para o setor financeiro, e se envolvem no que basicamente é especulação. Para que as atividades produtivas não se tornem tão pouco rentáveis, têm de mudar-se das zonas centrais para outras partes do sistema-mundo, negociando custos menores de transação com mão-de-obra mais barata. É por isso que começam a desaparecer os empregos em Detroit, Essen e Nagoya, e a se expandirem nas fábricas da China, da Índia e do Brasil.
Quanto às bolhas especulativas, algumas pessoas sempre fazem muito dinheiro com elas. Só que cedo ou tarde as bolhas especulativas sempre arrebentam. Se se pergunta por que essa fase B do ciclo Kondratieff durou tanto, é porque os poderes existentes - o Departamento do Tesouro e o Federal Reserve (Banco Central) norte-americanos, o FMI e seus colaboradores na Europa ocidental e Japão - intervieram regularmente no mercado e de maneira importante para ajudar a economia-mundo - em 1987, quando a bolsa despencou; em 1989, no colapso do crédito e das poupanças nos EUA; em 1997, com a queda das bolsas na Ásia oriental; em 1998, pelas mãos dos chamados Long Term Capital Management, um fundo Hedge de capitais de longo prazo; em 2001-2002, com Enron.
Com base no que aprenderam com as lições das fases B anteriores de Kondratieff, os poderes existentes pensaram que podiam vencer o sistema. Mas há limites intrínsecos para fazer isto. E agora chegamos neles, como Henry Paulson e Ben Bernanke o estão aprendendo para sua vergonha e talvez assombro. Desta vez não será tão fácil, provavelmente será impossível, evitar o pior.
No passado, uma vez que a depressão dava rédea solta a seus estragos, a economia-mundo se levantava com base nas inovações que podiam ser quase monopolizadas por um tempo. Assim, quando se diz que o mercado financeiro voltará a levantar-se, é isso o que se pensa que ocorrerá, agora como no passado, depois de as populações do mundo sentirem todo o estrago causado. E talvez em alguns poucos anos assim seja.
Há, contudo, algo novo que pode interferir nesse belo padrão cíclico que tem sustentado o sistema capitalista por uns 500 anos. As tendências estruturais podem interferir nas tendências cíclicas. Os traços estruturais básicos do capitalismo como sistema-mundo operam mediante certas regras que podem ser traçadas num gráfico como um equilíbrio em movimento ascendente. O problema, como acontece com todos os equilíbrios estruturais de todos os sistemas, é que com o tempo as curvas se movem para muito além do equilíbrio e se torna impossível regressar ao ponto anterior.
O que se fez para que o sistema tenha se tornado tão distante do equilíbrio? Grosso modo, o que ocorre é que, ao longo de 500 anos, os três custos básicos da produção capitalista - pessoal, insumos e impostos - têm subido constantemente no percentual dos preços possíveis de venda, de tal modo que hoje se tornou impossível obter grandes lucros da produção quase monopolizada que sempre foi a base da acumulação capitalista significativa. Não é porque o capitalismo esteja falhando no que faz melhor. É precisamente porque o está fazendo tão bem que finalmente minou a base para acumulações futuras.
Quando chegamos a esse ponto o sistema se bifurca (na linguagem dos estudos de alta complexidade). As conseqüências imediatas são uma turbulência altamente caótica, que nosso sistema-mundo está experimentando neste momento e que seguirá experimentando por uns 20-50 anos. Como todos apostam na direção que pensam ser a mais imediatamente adequada para sua perspectiva, emergirá uma ordem de caos numa das veredas dos muitos caminhos alternativos diferentes.
Podemos assegurar com confiança que o presente sistema não sobreviverá. O que não podemos predizer é qual nova ordem será escolhida para substituí-lo, porque esta será o resultado de uma infinidade de pressões individuais. Mas cedo ou tarde um novo sistema se instalará. Não será um sistema capitalista, mas pode ser algo muito pior (ainda mais polarizado e hierárquico) ou algo muito melhor (relativamente democrático e relativamente igualitário) que o atual sistema. Decidir um novo sistema é a luta política mundial mais importante de nossos tempos.
E, quanto às perspectivas imediatas de curta duração, ad interim, é claro o que ocorre em todas as partes. Estamos nos movendo em direção a um mundo protecionista (esqueça-se da chamada globalização). Estamos nos movendo para um papel muito maior do governo na produção. Mesmo os EUA e a Grã Bretanha estão nacionalizando parcialmente os bancos e as grandes empresas moribundas. Nos dirigimos a uma distribuição populista conduzida pelo governo, que pode assumir modos social-democratas à centro-esquerda ou formas autoritárias de extrema direita. E nos movemos em direção a conflitos sociais agudos no interior de alguns estados, à medida que todo o mundo passa a competir por uma fatia menor do bolo. No curto prazo, não é, de modo algum, um panorama agradável.

Immanuel Wallerstein, sociólogo norte-americano, um dos teóricos da Teoria do Sistema Mundial (de onde vem a expressão Sistema-Mundo) e pesquisador sênior da Universidade Yale. É autor de Sistema Mundial Moderno, de 1974.

Tradução: Katarina Peixoto - Carta Maior

sábado, 11 de outubro de 2008

HISTÓRIA DA CULTURA E HISTÓRIA SOCIAL

HISTÓRIA CULTURAL E HISTÓRIA SOCIAL

Silvia Hunold Lara

No Brasil, a história cultural tornou-se, há algum tempo, prática corrente entre os historiadores. Quase todos os programas de pós-graduação possuem alguma linha de pesquisa com a palavra cultura em seu título e vêm produzindo teses nesta área em quantidades crescentes. O problema é que, neste "boom" historiográfico, vozes simultâneas falam de cultura querendo dizer coisas bem diferentes, referindo-se a pesquisas de natureza bastante diversa. Por isso mesmo, as discussões sobre os sentidos e limites deste campo de reflexão histórica são, não somente bem-vindos, mas necessários.

Abordando o tema com habilidade e experiência, Peter Burke contrapõe a "história cultural clássica" à "nova história cultural", destacando quatro pontos críticos: a natureza dos vínculos entre cultura e sociedade; a existência de unidade ou diversidade culturais; a variação nos conceitos de cultura; e os problemas de uma noção de cultura estreita demais (equivalente às belas-artes). Diante deles, propõe uma história cultural que esteja atenta para "o encontro cultural, a circularidade e o processo de cotidianização".
Um rápido exame da produção mais recente da história cultural - no Brasil e no exterior - logo revela a grande variedade de significados atribuídos à palavra "cultura". Não se trata, porém, apenas de uma questão de terminologia, mas de modos diversos de conceber a atividade histórica, de formular problemas e abordar a documentação - ligados a tradições historiográficas distintas. Assim, a concepção de que há um universo mental comum entre "César e o último soldado de suas legiões", como afirmou Le Goff (1976), já pressupõe um tipo de vínculo entre sociedade e cultura, uma indagação sobre o que transcende as diferenças, e leva a um determinado tratamento das fontes. Contrapondo-se a esta concepção e criticando "a insistência nos elementos inertes, obscuros [e] inconscientes" da história das mentalidades, Ginzburg defendeu que "uma análise de classes" (centrada, portanto, nas diferenças e conflitos) era "sempre melhor que uma interclassista" (Ginzburg, 1987, p. 32)
A oposição, entretanto, não é tão simples. Enfatizando a diferença e o estranhamento, Darnton (1986) procurou decodificar um "universo mental estranho". Não tentava fazer emergir uma "cultura camponesa latente" em documentos produzidos pela Inquisição, como no caso dos primeiros trabalhos de Ginzburg, mas ter acesso a significados culturais existentes, por exemplo, em um massacre de gatos praticado por alguns artesãos no século XVIII. Pressupondo haver um idioma cultural comum - caso contrário, os patrões não se sentiriam atingidos pela "brincadeira" feita por seus empregados - procurou ver também variações. Trabalhou com diferentes interpretações patronais (do dono da gráfica ou de sua mulher) e várias possibilidades de entendimento do ritual do massacre, conforme procurasse situá-lo em tradições corporativas, festivas etc. Aqui, ao invés de dicotomias culturais e relações de circularidade e troca entre universos distintos, há diversos conflitos simultâneos e entrecruzados que se expressam através daquele (para nós) estranho massacre de gatos.
A existência ou não de consensos culturais, a multiplicidade e as relações entre significações diversas e em conflito: estes são aspectos que mantêm vínculos diretos com os debates mais amplos da história social, repondo, em novos termos, questões clássicas nesta área. Uma boa maneira de retomar alguns dos temas propostos por Peter Burke é verificar seus imbricamentos e mostrar como, do ponto de vista das implicações e problemas envolvidos pelo conhecimento histórico, não há separação entre história social e história cultural.
Creio ser esta uma questão central para os que se dedicam ao estudo da história cultural. Como tratar, ao mesmo tempo, da unidade e da diversidade culturais? Dicotomias ou polaridades que opõem a elite ao popular, o urbano ao rural, letrados e iletrados, apesar de muito criticadas, ainda continuam a ser freqüentemente utilizadas. As categorias tradicionalmente utilizadas pela história social também não parecem ser muito adequadas à análise cultural. De um lado, pode-se concordar com Hobsbawm (1987) sobre comportamentos e valores que distinguem a "cultura operária" na Inglaterra de meados do século XIX e pensar, portanto, em culturas "de classe", capazes de separar e diferenciar as classes entre si. Por outro, não se pode esquecer as considerações de Gutman (1976) sobre as dissensões internas à "classe operária" norte-americana, em função da das experiências anteriores e da diversidade étnica.
Hobsbawm estava mais interessado nas questões da consciência de classe; Gutman, por sua vez, procurou examinar as tensões entre diversos grupos de homens e mulheres recém-chegados à América e à vida das fábricas. Ênfases diferentes, questões e pesquisas diversas. O problema de Gutman não está mais nas relações entre "cultura" e "sociedade", mas sim na apreensão da diversidade e da unidade cultural no interior dos vários grupos sociais.
Do ponto de vista das relações entre um grupo e a sociedade, creio que um artigo de Thompson (1974) é bastante sugestivo. Trabalhando com a oposição entre gentry e plebe, mais que reconstruir o "universo mental dos trabalhadores ingleses", ele mostrou como, partilhando valores comuns, os trabalhadores pobres foram se sentindo e sendo diferenciados da e pela gentry; numa época de aparente consenso, o conflito entre os dois grupos fez parte da própria diferenciação social entre os dois pólos e criou canais específicos de compreensão e expressão destas tensões.
Evidentemente, como diriam Thompson, Hill e tantos outros, homens e mulheres experimentam identidades e diferenças ao longo de suas vidas. Compartilham interesses ou lutam contra inimigos comuns, pensam sobre isso e consideram suas estratégias a partir de certos valores, herdados ou construídos. A experiência - uma das noções mais caras a Thompson - não pertence à história social ou à história cultural, mas interliga necessariamente as duas abordagens. Neste sentido, há "sensibilidades" ou "mentalidades" diversas - mas é preciso não esquecer que ao teatro da gentry se opõe o contra-teatro da plebe: mais que um idioma, talvez o que tenhamos aqui seja uma gramática cultural comum. Para além da questão da terminologia há a idéia de que pessoas diferentes podem atribuir significados diversos a práticas culturais comuns, ou expressar sentidos contrários no interior de uma mesma "linguagem" cultural.
A idéia de um idioma cultural comum parece ser mais adequada a situações de aparente consenso social, mas também pode ser explorada em circunstâncias históricas em que as dificuldades de comunicação parecem ter sido enormes - como no caso de culturas radicalmente diferentes que entram em contato pela primeira vez. A análise de situações de choque cultural, em que pessoas de mundos estranhos passam a estar em contato, são importantes para o estudo das aproximações e afastamentos entre grupos sociais antagônicos e desiguais no interior de uma mesma sociedade. Noções como sincretismo, por exemplo, tornam-se extremamente precárias nestes contextos. Creio que um dos grandes problemas que atravessam a história cultural e social hoje em dia seja justamente o de lidar com estas relações contraditórias de consenso e dissenso, unidade e diversidade, união e conflito entre grupos sociais e no interior dos grupos de uma sociedade.
Pelo menos é o que mais tem me interessado, e o que estou tentando abordar através de minha própria pesquisa. Até pouco tempo atrás, estudei a escravidão no Brasil da segunda metade do século XVIII seguindo questões formuladas no interior da história social "clássica". Estava preocupada com "os escravos", com sua visão da escravidão, com suas possibilidades de alterar suas condições de vida e trabalho. Diferenças de gênero e origem, por exemplo, não fizeram parte de minhas preocupações. Quando muito estavam presentes em tabelas que apresentavam porcentagens de homens e mulheres, casados e solteiros, crioulos e africanos etc. Hoje, tenho procurado verificar como estas diferenças aparecem na vida de escravas, forras e livres que andavam pelas ruas de Salvador e Rio de Janeiro, no mesmo período.
Como as diferenças entre aquelas mulheres (brancas, pardas e negras; crioulas ou africanas; livres, forras e escravas) eram percebidas por elas mesmas e pelos outros (homens e mulheres, na sua diversidade social e cultural) que com elas se relacionavam? Não se trata de um estudo centralizado nas questões de gênero: o objeto principal estudado são os trajes femininos. A escolha é meramente estratégica, pois permite discutir como gênero, raça e etnia se cruzam nos dois mais importantes núcleos urbanos da colônia portuguesa na América. Faço isso trabalhando com os diversos significados atribuídos às roupas das várias mulheres que circulavam, em diferentes ocasiões, pelas duas cidades. De certo modo, a questão dos idiomas culturais se coloca aqui, num contexto bastante interessante: em Salvador e Rio de Janeiro do final do século XVIII havia pessoas culturalmente diferentes (vindas de Portugal, de outras nações européias ou da África) e socialmente desiguais (escravos e seus senhores, forros, artesãos, etc). É instigante verificar como, apesar da grande presença da escravidão dos africanos e de seus descendentes, as categorias culturais e sociais não podem ser mecanicamente associadas uma à outra: os senhores, por exemplo, não eram todos brancos, livres e europeus; nem os africanos eram todos escravos etc.
Por isso, afirmo que não podemos mais trabalhar com conceitos tão polarizados, com oposições simplistas que separam radicalmente economia e cultura, cultura e sociedade, e assim por diante. Como dizia Hobsbawm em um artigo sobre a história social, o historiador das idéias talvez possa não prestar muita atenção aos aspectos econômicos e o historiador econômico talvez não precise pensar em Shakespeare, mas o historiador social que não levar em conta os dois não vai muito longe (1971, p.25). Passados mais de 20 anos, diria que a balança pendeu cada vez mais para a cultura. Os trabalhos recentes da história social vêm demonstrando que não só "novos" aspectos da experiência humana devem ser levados em conta, mas que eles só podem ser explicados ou interpretados se atentarmos para as complexas relações culturais que os informam.
Isso diz respeito também aos debates teóricos mais amplos que atravessam a história social. Talvez o mais importante, a meu ver, seja aquele emblematicamente travado entre Chartier e Darnton: até que ponto podemos ultrapassar a "textualidade" dos documentos para alcançar as práticas sociais? É possível chegarmos a conhecer a história, os valores e as ações, a cultura de pessoas que nada deixaram registrado? Restritos a interpretar a interpretação de terceiros, ficaremos irremediavelmente circunscritos ao terreno das representações?
Estaremos presos às tramas dos relatos de Nicolas Contat que em 1762 narrou suas experiências numa oficina gráfica em Paris no final da década de 1730, ou de Jean de Corras, o juiz que presidiu o processo contra o falso Martin Guerre em 1560, para citar um outro exemplo (Davis, 1987), - ou podemos, através destes relatos, chegar a conhecer as esperanças e sentimentos dos camponeses do sul da França no século XVI ou os motivos que levaram os trabalhadores de uma certa gráfica em Paris a massacrarem gatos e não cães em 1730?
A tensão entre práticas e representações atravessa a "nova história social" tanto quanto a "nova história cultural" e constitui-se num dos eixos centrais do debate a respeito dos limites do conhecimento histórico nestas duas áreas. Do meu ponto de vista, os historiadores contemporâneos sempre têm em mente que os documentos possuem apresentam "filtros" e "opacidades" - temos que decidir se permanecemos amarrados a estes obstáculos ou se podemos usá-los para conhecer as ações humanas no passado: entre práticas e representações, quais os limites do conhecimento que pretendemos produzir? As críticas feitas por Chartier ao trabalho de Darnton não são irrelevantes e precisamos aprimorar nossos conhecimentos sobre as fontes que utilizamos. Afinal, como diz Ginzburg (1990) a respeito dos processos inquisitoriais, podemos até mesmo utilizar as analogias e "traduções" feitas pelos inquisidores como instrumentos para nos aproximarmos das crenças dos camponeses do início da época moderna... Conhecer os parâmetros no interior dos quais as fontes que utilizamos foram produzidas é condição primordial do trabalho do historiador. História cultural e história social entrelaçam-se, aqui, inevitavelmente.
No entanto, talvez a principal questão que tenhamos que enfrentar seja a da necessidade de retomar a lição deixada pela primeira geração dos Annales: precisamos de bons problemas para fazermos uma boa história. Hoje eles não mais podem ser formulados sem levar em conta as dimensões culturais e sociais e vice-versa. A dissociação entre as duas, a predominância de uma sobre a outra nos leva às questões apontadas por Burke. A associação entre elas nos permite fugir ao mesmo tempo da fragmentação, da despolitização e do diletantismo que tantas vezes ainda vemos presente na história cultural.
Referências Bibliográficas
Chartier, Roger. Text, symbols, and frenchness. The Journal of Modern History, 57 (4): 682-695, 1985.
Darnton, Robert. História e antropologia In: O beijo de Lamourette. São Paulo: Cia. das Letras, 1990. p. 284-303.
_____. Os trabalhadores se revoltam: o grande massacre de gatos na Rua Saint-Severin In: _____. O grande massacre de gatos. Rio de Janeiro: Graal, 1986, p. 103-139.
Davis, Natalie Zemon. O Retorno de Martin Guerre. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
Ginzburg, Carlo. O Inquisidor como antropólogo. Revista Brasileira de História, 21: 9-20, 1991.
_____. O Queijo e os vermes. São Paulo: Cia. das Letras, 1987. p. 32
Gutman, Herbert. Work, culture, and society in industrializing America, 1815-1919. In: _____. Work, culture, and society. New York: Vintage, 1976, p. 9-78.
HOBSBAWM, Eric. J. A formação da cultura da classe operária britânica In: _____. Mundos do trabalho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 251-272.
_____.From social history to the history of society. Daedalus, 100, 1971
Le Goff, Jacques. As mentalidades: uma história ambígua In: _____ & Nora, P. História: novos objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976. p. 68-83.
Thompson, Edward P. Patrician society, plebeian culture. Journal of Social History, 7 (4): 1974.

sábado, 4 de outubro de 2008

ENTREVISTA: ERIC HOBSBAWM

A crise do capitalismo e a importância atual de Marx

Em entrevista a Marcello Musto, o historiador Eric Hobsbawm analisa a atualidade da obra de Marx e o renovado interesse que vem despertando nos últimos anos, mais ainda agora após a nova crise de Wall Street. E fala sobre a necessidade de voltar a ler o pensador alemão: “Marx não regressará como uma inspiração política para a esquerda até que se compreenda que seus escritos não devem ser tratados como programas políticos, mas sim como um caminho para entender a natureza do desenvolvimento capitalista”.
Marcello Musto - Sin Permiso

Eric Hobsbawm é considerado um dos maiores historiadores vivos. É presidente do Birbeck College (London University) e professor emérito da New School for Social Research (Nova Iorque). Entre suas muitas obras, encontra-se a trilogia acerca do “longo século XIX”: “A Era da Revolução: Europa 1789-1848” (1962); “A Era do Capital: 1848-1874” (1975); “A Era do Império: 1875-1914 (1987) e o livro “A Era dos Extremos: o breve século XX, 1914-1991 (1994), todos traduzidos em vários idiomas. Entrevistamos o historiador por ocasião da publicação do livro “Karl Marx’s Grundrisse. Foundations of the Critique of Political Economy 150 Years Later” (Os Manuscritos de Karl Marx. Elementos fundamentais para a Crítica da Economia Política, 150 anos depois). Nesta conversa, abordamos o renovado interesse que os escritos de Marx vêm despertando nos últimos anos e mais ainda agora após a nova crise de Wall Street. Nosso colaborador Marcello Musto entrevistou Hobsbawm para Sin Permiso.
Marcello Musto: Professor Hobsbawm, duas décadas depois de 1989, quando foi apressadamente relegado ao esquecimento, Karl Marx regressou ao centro das atenções. Livre do papel de intrumentum regni que lhe foi atribuído na União Soviética e das ataduras do “marxismo-leninismo”, não só tem recebido atenção intelectual pela nova publicação de sua obra, como também tem sido objeto de crescente interesse. Em 2003, a revista francesa Nouvel Observateur dedicou um número especial a Marx, com um título provocador: “O pensador do terceiro milênio?”. Um ano depois, na Alemanha, em uma pesquisa organizada pela companhia de televisão ZDF para estabelecer quem eram os alemães mais importantes de todos os tempos, mais de 500 mil espectadores votaram em Karl Marx, que obteve o terceiro lugar na classificação geral e o primeiro na categoria de “relevância atual”. Em 2005, o semanário alemão Der Spiegel publicou uma matéria especial que tinha como título “Ein Gespenst Kehrt zurük” (A volta de um espectro), enquanto os ouvintes do programa “In Our Time” da rádio 4, da BBC, votavam em Marx como o maior filósofo de todos os tempos. Em uma conversa com Jacques Attali, recentemente publicada, você disse que, paradoxalmente, “são os capitalistas, mais que outros, que estão redescobrindo Marx” e falou também de seu assombro ao ouvir da boca do homem de negócios e político liberal, George Soros, a seguinte frase: “Ando lendo Marx e há muitas coisas interessantes no que ele diz”. Ainda que seja débil e mesmo vago, quais são as razões para esse renascimento de Marx? É possível que sua obra seja considerada como de interesse só de especialistas e intelectuais, para ser apresentada em cursos universitários como um grande clássico do pensamento moderno que não deveria ser esquecido? Ou poderá surgir no futuro uma nova “demanda de Marx”, do ponto de vista político?
Eric Hobsbawm: Há um indiscutível renascimento do interesse público por Marx no mundo capitalista, com exceção, provavelmente, dos novos membros da União Européia, do leste europeu. Este renascimento foi provavelmente acelerado pelo fato de que o 150° aniversário da publicação do Manifesto Comunista coincidiu com uma crise econômica internacional particularmente dramática em um período de uma ultra-rápida globalização do livre-mercado. Marx previu a natureza da economia mundial no início do século XXI, com base na análise da “sociedade burguesa”, cento e cinqüenta anos antes. Não é surpreendente que os capitalistas inteligentes, especialmente no setor financeiro globalizado, fiquem impressionados com Marx, já que eles são necessariamente mais conscientes que outros sobre a natureza e as instabilidades da economia capitalista na qual eles operam. A maioria da esquerda intelectual já não sabe o que fazer com Marx. Ela foi desmoralizada pelo colapso do projeto social-democrata na maioria dos estados do Atlântico Norte, nos anos 1980, e pela conversão massiva dos governos nacionais à ideologia do livre mercado, assim como pelo colapso dos sistemas políticos e econômicos que afirmavam ser inspirados por Marx e Lênin. Os assim chamados “novos movimentos sociais”, como o feminismo, tampouco tiveram uma conexão lógica com o anti-capitalismpo (ainda que, individualmente, muitos de seus membros possam estar alinhados com ele) ou questionaram a crença no progresso sem fim do controle humano sobre a natureza que tanto o capitalismo como o socialismo tradicional compartilharam. Ao mesmo tempo, o “proletariado”, dividido e diminuído, deixou de ser crível como agente histórico da transformação social preconizada por Marx. Devemos levar em conta também que, desde 1968, os mais proeminentes movimentos radicais preferiram a ação direta não necessariamente baseada em muitas leituras e análises teóricas. Claro, isso não significa que Marx tenha deixado de ser considerado como um grande clássico e pensador, ainda que, por razões políticas, especialmente em países como França e Itália, que já tiveram poderosos Partidos Comunistas, tenha havido uma apaixonada ofensiva intelectual contra Marx e as análises marxistas, que provavelmente atingiu seu ápice nos anos oitenta e noventa. Há sinais agora de que a água retomará seu nível.
Marcello Musto: Ao longo de sua vida, Marx foi um agudo e incansável investigador, que percebeu e analisou melhor do que ninguém em seu tempo o desenvolvimento do capitalismo em escala mundial. Ele entendeu que o nascimento de uma economia internacional globalizada era inerente ao modo capitalista de produção e previu que este processo geraria não somente o crescimento e prosperidade alardeados por políticos e teóricos liberais, mas também violentos conflitos, crises econômicas e injustiça social generalizada. Na última década, vimos a crise financeira do leste asiático, que começou no verão de 1997; a crise econômica Argentina de 1999-2002 e, sobretudo, a crise dos empréstimos hipotecários que começou nos Estados Unidos em 2006 e agora tornou-se a maior crise financeira do pós-guerra. É correto dizer, então, que o retorno do interesse pela obra de Marx está baseado na crise da sociedade capitalista e na capacidade dele ajudar a explicar as profundas contradições do mundo atual?
Eric Hobsbawm: Se a política da esquerda no futuro será inspirada uma vez mais nas análises de Marx, como ocorreu com os velhos movimentos socialistas e comunistas, isso dependerá do que vai acontecer no mundo capitalista. Isso se aplica não somente a Marx, mas à esquerda considerada como um projeto e uma ideologia política coerente. Posto que, como você diz corretamente, a recuperação do interesse por Marx está consideravelmente – eu diria, principalmente – baseado na atual crise da sociedade capitalista, a perspectiva é mais promissora do que foi nos anos noventa. A atual crise financeira mundial, que pode transformar-se em uma grande depressão econômica nos EUA, dramatiza o fracasso da teologia do livre mercado global descontrolado e obriga, inclusive o governo norte-americano, a escolher ações públicas esquecidas desde os anos trinta. As pressões políticas já estão debilitando o compromisso dos governos neoliberais em torno de uma globalização descontrolada, ilimitada e desregulada. Em alguns casos, como a China, as vastas desigualdades e injustiças causadas por uma transição geral a uma economia de livre mercado, já coloca problemas importantes para a estabilidade social e mesmo dúvidas nos altos escalões de governo. É claro que qualquer “retorno a Marx” será essencialmente um retorno à análise de Marx sobre o capitalismo e seu lugar na evolução histórica da humanidade – incluindo, sobretudo, suas análises sobre a instabilidade central do desenvolvimento capitalista que procede por meio de crises econômicas auto-geradas com dimensões políticas e sociais. Nenhum marxista poderia acreditar que, como argumentaram os ideólogos neoliberais em 1989, o capitalismo liberal havia triunfado para sempre, que a história tinha chegado ao fim ou que qualquer sistema de relações humanas possa ser definitivo para todo o sempre.
Marcello Musto: Você não acha que, se as forças políticas e intelectuais da esquerda internacional, que se questionam sobre o que poderia ser o socialismo do século XXI, renunciarem às idéias de Marx, estarão perdendo um guia fundamental para o exame e a transformação da realidade atual?
Eric Hobsbawm: Nenhum socialista pode renunciar às idéias de Marx, na medida que sua crença em que o capitalismo deve ser sucedido por outra forma de sociedade está baseada, não na esperança ou na vontade, mas sim em uma análise séria do desenvolvimento histórico, particularmente da era capitalista. Sua previsão de que o capitalismo seria substituído por um sistema administrado ou planejado socialmente parece razoável, ainda que certamente ele tenha subestimado os elementos de mercado que sobreviveriam em algum sistema pós-capitalista. Considerando que Marx, deliberadamente, absteve-se de especular acerca do futuro, não pode ser responsabilizado pelas formas específicas em que as economias “socialistas” foram organizadas sob o chamado “socialismo realmente existente”. Quanto aos objetivos do socialismo, Marx não foi o único pensador que queria uma sociedade sem exploração e alienação, em que os seres humanos pudessem realizar plenamente suas potencialidades, mas foi o que expressou essa idéia com maior força e suas palavras mantêm seu poder de inspiração. No entanto, Marx não regressará como uma inspiração política para a esquerda até que se compreenda que seus escritos não devem ser tratados como programas políticos, autoritariamente ou de outra maneira, nem como descrições de uma situação real do mundo capitalista de hoje, mas sim como um caminho para entender a natureza do desenvolvimento capitalista. Tampouco podemos ou devemos esquecer que ele não conseguiu realizar uma apresentação bem planejada, coerente e completa de suas idéias, apesar das tentativas de Engels e outros de construir, a partir dos manuscritos de Marx, um volume II e III de “O Capital”. Como mostram os “Grundrisse”, aliás. Inclusive, um Capital completo teria conformado apenas uma parte do próprio plano original de Marx, talvez excessivamente ambicioso. Por outro lado, Marx não regressará à esquerda até que a tendência atual entre os ativistas radicais de converter o anti-capitalismo em anti-globalização seja abandonada. A globalização existe e, salvo um colapso da sociedade humana, é irreversível. Marx reconheceu isso como um fato e, como um internacionalista, deu as boas vindas, teoricamente. O que ele criticou e o que nós devemos criticar é o tipo de globalização produzida pelo capitalismo.
Marcello Musto: Um dos escritos de Marx que suscitaram o maior interesse entre os novos leitores e comentadores são os “Grundrisse”. Escritos entre 1857 e 1858, os “Grundrisse” são o primeiro rascunho da crítica da economia política de Marx e, portanto, também o trabalho inicial preparatório do Capital, contendo numerosas reflexões sobre temas que Marx não desenvolveu em nenhuma outra parte de sua criação inacabada. Por que, em sua opinião, estes manuscritos da obra de Marx, continuam provocando mais debate que qualquer outro texto, apesar do fato dele tê-los escrito somente para resumir os fundamentos de sua crítica da economia política? Qual é a razão de seu persistente interesse?
Eric Hobsbawm: Desde o meu ponto de vista, os "Grundrisse" provocaram um impacto internacional tão grande na cena marxista intelectual por duas razões relacionadas. Eles permaneceram virtualmente não publicados antes dos anos cinqüenta e, como você diz, contendo uma massa de reflexões sobre assuntos que Marx não desenvolveu em nenhuma outra parte. Não fizeram parte do largamente dogmatizado corpus do marxismo ortodoxo no mundo do socialismo soviético. Mas não podiam simplesmente ser descartados. Puderam, portanto, ser usados por marxistas que queriam criticar ortodoxamente ou ampliar o alcance da análise marxista mediante o apelo a um texto que não podia ser acusado de herético ou anti-marxista. Assim, as edições dos anos setenta e oitenta, antes da queda do Muro de Berlim, seguiram provocando debate, fundamentalmente porque nestes escritos Marx coloca problemas importantes que não foram considerados no “Capital”, como por exemplo as questões assinaladas em meu prefácio ao volume de ensaios que você organizou (Karl Marx's Grundrisse. Foundations of the Critique of Political Economy 150 Years Later, editado por M. Musto, Londres-Nueva York, Routledge, 2008).
Marcello Musto: No prefácio deste livro, escrito por vários especialistas internacionais para comemorar o 150° aniversário de sua composição, você escreveu: “Talvez este seja o momento correto para retornar ao estudo dos “Grundrisse”, menos constrangidos pelas considerações temporais das políticas de esquerda entre a denúncia de Stalin, feita por Nikita Khruschev, e a queda de Mikhail Gorbachev”. Além disso, para destacar o enorme valor deste texto, você diz que os “Grundrisse” “trazem análise e compreensão, por exemplo, da tecnologia, o que leva o tratamento de Marx do capitalismo para além do século XIX, para a era de uma sociedade onde a produção não requer já mão-de-obra massiva, para a era da automatização, do potencial de tempo livre e das transformações do fenômeno da alienação sob tais circunstâncias. Este é o único texto que vai, de alguma maneira, mais além dos próprios indícios do futuro comunista apontados por Marx na “Ideologia Alemã”. Em poucas palavras, esse texto tem sido descrito corretamente como o pensamento de Marx em toda sua riqueza. Assim, qual poderia ser o resultado da releitura dos “Grundrisse” hoje?
Eric Hobsbawm: Não há, provavelmente, mais do que um punhado de editores e tradutores que tenham tido um pleno conhecimento desta grande e notoriamente difícil massa de textos. Mas uma releitura ou leitura deles hoje pode ajudar-nos a repensar Marx: a distinguir o geral na análise do capitalismo de Marx daquilo que foi específico da situação da sociedade burguesa na metade do século XIX. Não podemos prever que conclusões podem surgir desta análise. Provavelmente, somente podemos dizer que certamente não levarão a acordos unânimes.
Marcello Musto: Para terminar, uma pergunta final. Por que é importante ler Marx hoje?
Eric Hobsbawm: Para qualquer interessado nas idéias, seja um estudante universitário ou não, é patentemente claro que Marx é e permanecerá sendo uma das grandes mentes filosóficas, um dos grandes analistas econômicos do século XIX e, em sua máxima expressão, um mestre de uma prosa apaixonada. Também é importante ler Marx porque o mundo no qual vivemos hoje não pode ser entendido sem levar em conta a influência que os escritos deste homem tiveram sobre o século XX. E, finalmente, deveria ser lido porque, como ele mesmo escreveu, o mundo não pode ser transformado de maneira efetiva se não for entendido. Marx permanece sendo um soberbo pensador para a compreensão do mundo e dos problemas que devemos enfrentar.
Tradução para Sin Permiso (inglês-espanhol): Gabriel Vargas Lozano
Tradução para Carta Maior (espanhol-português): Marco Aurélio Weissheimer

terça-feira, 30 de setembro de 2008

ENTREVISTA COM CARLO GINZBURG

Descobertas de um espectador

MARIA LÚCIA G. PALLARES-BURKE
especial para a Folha

Poucos historiadores hoje são tão originais como Carlo Ginzburg, poucos escrevem tão bem quanto ele e ainda menos compartilham de sua notável amplitude de interesses. Ginzburg, que há dez anos ensina na Universidade da Califórnia e divide seu ano entre Los Angeles (EUA) e Bolonha (Itália), nasceu em 1939 numa família judia estabelecida em Torino. Seu pai, Leone Ginzburg (russo de Odessa que emigrou ainda criança para a Itália), foi professor de literatura russa e morreu numa prisão fascista romana quando Carlo tinha cinco anos de idade; enquanto sua mãe, Natalia Ginzburg, se tornou uma das mais famosas e respeitadas escritoras italianas deste século. Desde cedo, a originalidade da produção intelectual de Ginzburg deixou a comunidade acadêmica um tanto atônita. "Um intelectual para se ficar de olho!", como alertou um resenhista americano no início dos anos 70. De fato, seu primeiro livro, publicado quando tinha 27 anos, foi um trabalho polêmico e inovador.

O ponto de partida desse estudo foi a desconcertante resposta dada ao tribunal da Inquisição por um grupo de camponeses italianos acusados de feitiçaria: qualificando-se de "benandanti" ("Andarilhos do Bem", 1966, Companhia das Letras), eles se diziam benfeitores que combatiam as bruxas durante a noite armados de talos de erva doce, enquanto estas empunhavam espigas de milho. Essa resposta inesperada, que contradizia as expectativas dos inquisidores, foi a base de um trabalho que deu uma notável contribuição aos estudos sobre a feitiçaria. No entanto, foi "O Queijo e os Vermes" (1976, Companhia das Letras), o estudo da cosmologia de um moleiro do século 16 (também interrogado pela Inquisição sob a acusação de heresia), que tornou Ginzburg internacionalmente famoso. Desde então, a despeito de seu horror por etiquetas, ele ficou conhecido como um dos líderes da chamada "micro-história", termo que se tornou moda após ter sido usado como título de uma série de livros editados por Ginzburg e Giovanni Levi. Seus outros livros -como o que estuda a história da idéia do sabá das bruxas ao longo de 2.000 anos no mundo euro-asiático ("História Noturna", 1989, Companhia das Letras) e o que reflete sobre um capítulo trágico da história recente da Justiça italiana e sobre as relações entre o papel do juiz e o do historiador ("Il Giudice e lo Storico", 1991)- são reveladores da diversidade de temas e abordagens com que Ginzburg trabalha e que o tornam um historiador difícil de classificar, coisa que, aliás, muito o agrada. Além de livros, Ginzburg tem publicado grande parte do seu trabalho sob a forma de ensaios. O mais famoso deles, traduzido em 12 línguas, tem o intrigante título de "Spie" (Pistas) e fornece, ele próprio, uma pista para o entendimento de toda a obra de Ginzburg. Nesse brilhante ensaio, ele trata de enfatizar a importância do detalhe aparentemente sem importância, de uma frase ou gesto aparentemente trivial, que leva o investigador -quer seja um detetive como Sherlock Holmes, um psicanalista como Freud ou um historiador como o próprio Ginzburg- a fazer importantes descobertas. É com esse especial talento detetivesco que, partindo quase sempre de detalhes aparentemente triviais, ele confronta com elegância, verve e entusiasmo temas e áreas de conhecimento sobre os quais inicialmente nada sabe. Como ele próprio diz, quando está diante de algo que desconhece totalmente, mas sobre o que está a ponto de aprender, sente intensamente o que chama de "a euforia da ignorância". Deve ser, como para um esquiador, o prazer de esquiar na neve fresca, afirma. Foi em seu apartamento em Bolonha que Ginzburg recebeu a Folha. Extremamente simpático, espontâneo e expressivo, Ginzburg discorreu longamente sobre sua trajetória e opções intelectuais, sua atitude diante da fama, sua visão sobre o papel do historiador, sua opinião sobre Foucault, Borges e o pós-modernismo.
Folha - Quais os aspectos de sua origem e formação considera cruciais para o entendimento de suas idéias e interesses?
Carlo Ginzburg - São muitos, mas devo dizer de antemão que, como historiador, sou um pouco cético sobre as explicações teleológicas que vêem os indivíduos como se fossem uma linha reta que vai, sem desvios, da infância à maturidade. Revendo minha vida, poderia me perguntar: quais foram as escolhas cruciais? De certo modo, a vida é como um jogo de xadrez, em que as jogadas cruciais já ocorreram bem antes do xeque-mate. Assim, quando seleciono um momento em que penso ter feito uma escolha decisiva, é possível perceber que já havia limitações, constrangimentos. Minha opção pela história ilustra bem o que quero dizer. Quando era adolescente, queria me tornar romancista como minha mãe, mas logo desisti ao perceber que seria um mau romancista. No entanto, meu envolvimento com a arte da escrita é algo que ainda faz parte de mim. Diria que é como um dique ou um fosso: quando se bloqueia a água, ela se desvia com força para uma direção vizinha. Assim, minha paixão pela ficção se tornou parte de minha paixão pela escrita da história. O mesmo aconteceu com o desejo de me tornar pintor, em que os elementos que foram bloqueados se transformaram em um novo impulso. Tão logo desisti da idéia, por perceber que não passaria de um pintor medíocre, a paixão pela pintura também se tornou parte de mim, e até pensei em me dedicar à história da arte, o que acabei por fazer mais tarde.
Folha - O que o despertou para o estudo do passado?
Ginzburg - Comecei a me desviar da leitura de romances quando estava no fim do liceu, lendo "A História da Europa no Século 19", de Benedetto Croce, livro de que, na verdade, não gostei. Logo depois, decidido a prestar concurso para a concorrida Scuola Normale de Pisa, passei o verão lendo autores que ainda são cruciais para o meu trabalho, como Erich Auerbach, Leo Spitzer, Gianfranco Contini, ou seja, crítica literária baseada em detalhes, em leitura vagarosa e meticulosa de passagens de livros e poemas extensos. Quando fui aceito em Pisa, comecei me dedicando à crítica literária, mas logo ocorreu o encontro que foi decisivo para mim: conheci Delio Cantimori durante uma semana de visita à Pisa, onde ele deu um seminário sobre "Weltgeschichtliche Betrachtungen" (Considerações sobre a História Universal), de Jakob Burckhardt. Essa foi uma experiência diferente e crucial para mim. De surpresa, ele perguntou quem de nós sabia ler alemão; e então nos mandou comparar o texto de Burckhardt com traduções em várias línguas. Após uma semana havíamos lido umas 12 linhas. Isso foi algo marcante, que ainda hoje me inspira. Recentemente comecei um seminário na Universidade da Califórnia dizendo aos meus alunos: "Na Itália há um novo movimento chamado "Slow Food", em oposição à "Fast Food". Meu seminário será em "Slow Reading" (leitura lenta)". Outro historiador proeminente e fascinante que conheci nessa época, por relações familiares, foi Franco Venturi, amigo de meu pai... Foi nessa ocasião que me defrontei novamente com uma escolha que, retrospectivamente, se revelaria crucial em minha vida intelectual: trabalhar com Venturi, um especialista do século 18, ou com Cantimori, um especialista nos heréticos do Renascimento? Os dois eram diferentes em todos os aspectos, inclusive o político. O primeiro havia desempenhado um grande papel na resistência antifascista (quando conhecera meu pai) e se tornara também profundamente anticomunista. Já Cantimori, havia sido fascista, para depois se tornar comunista. E eu escolhi trabalhar com Cantimori! Hoje reconheço que o que me atraiu foi o que nele havia de muito complexo, de não-familiar, de distante, de dolorosamente distante de mim. Sim, acredito que aprendemos mais com o que é distante. Ao não escolher Venturi estava, inconscientemente, reagindo contra uma fidelidade estreita ao antifascismo, ao que era, em suma, o âmago de minha formação. Com Cantimori (e com as reflexões de Gramsci sobre a vitória do fascismo) aprendi que as coisas não são tão simples como parecem!
Folha - Quem são seus principais interlocutores?
Ginzburg - Meus pais são, de certo modo, uma dupla à parte. Meu pai é uma presença invisível, que sinto fortemente, mas com o qual não discuto meu trabalho. Já minha mãe, que foi uma figura crucial em minha formação geral, lia e comentava muito do que escrevia e sinto que me dirijo a ela quando escrevo para uma maior audiência, não profissional. O ato de escrever, no meu entender, é algo que está profundamente relacionado ao ato de comunicar algo a alguém, o que pode parecer óbvio, mas não é, já que há muita coisa escrita (não só por historiadores) que parece ignorar completamente o público, como se a escrita fosse por si só suficiente. Mas, se por um lado, a interação com pessoas é algo importante, por outro lado, acho que muita comunicação é também um mal, causa uma espécie de entropia e, num certo sentido, mata a comunicação. Senti isso de perto quando me vi transformado, mais ou menos da noite para o dia, em historiador da moda. Até meados dos anos 70 eu tinha a impressão de estar totalmente isolado, envolvido em questões com que nenhum historiador se importava -meu primeiro livro, "Os Andarilhos do Bem" (1966), não teve audiência-, e há, sem dúvida, algo muito bom em se estar isolado. Mas, quando escrevi "O Queijo e os Vermes" (1976), que teve sucesso imediato, percebi que a audiência já existia. O mesmo aconteceu com a publicação de meu ensaio sobre "pistas" ("Spie - Radici di un Paradigma Scientifico"), publicado em 1978. Durante duas semanas fui inundado com telefonemas de toda parte da Itália, convidando-me para falar sobre o assunto em Catânia, Milão, e assim por diante. Lembro-me de pensar que corria sério risco de perder o que há de bom no isolamento e de me ver engolido por uma espécie de fluxo de comunicação. Folha - Seu trabalho revela, algumas vezes, um mundo em que o entrelaçamento de textos, traduções e tradições é muito forte, algo que lembra os contos de Jorge Luis Borges. O senhor se inspirou, em algum grau, nesse autor?
Ginzburg - Não, penso que não. Devo confessar que li Borges no início dos anos 60, gostei bastante e acho alguns de seus contos muito poderosos. Todavia o considero um escritor superestimado em demasia. No meu entender, ele não é um autor de primeira classe, mas um excelente escritor de segunda classe. Mas, dito isso, é possível que eu tenha sido influenciado por Borges - sem saber e sem ser agora capaz de reconhecer- via Italo Calvino, um escritor e um homem extraordinário com quem muito aprendi e que foi muito influenciado por Borges, especialmente em suas últimas obras. Um autor é, no meu entender, alguém capaz de nos tornar conscientes de certas dimensões de realidade. Há, por assim dizer, algo de kafkiano na realidade, especialmente na do século 20, que Kafka foi capaz de nos revelar. Esse lado cognitivo da literatura me é muito importante, e aprendi isso com minha mãe e com Calvino. Em meu último livro, "Occhiacci di Legno", há um ensaio intitulado "Ecce", em que desenvolvo um tópico totalmente desconhecido até então por mim. Baseando-me em pesquisas prévias de outros autores e as desenvolvendo em certas direções, comecei a refletir sobre um fato que os estudiosos conhecem, mas sobre o qual não se fala: o fato de Jesus ter nascido de uma virgem ser o resultado de uma profecia que foi mediada por um erro de tradução. Se pensarmos nos santuários em todo o mundo, no culto à Virgem Maria, em tudo, enfim, que decorreu daquela profecia, vemos que, paradoxalmente, um erro de tradução pode ser uma força propulsora e gerar a realidade. Poder-se-ia dizer: ora, isso é Borges! Na verdade, não é Borges, isso é a realidade, mas certamente ele pode nos ajudar a ver isso.
Folha - O senhor já confessou que gosta de estar na periferia, não só da profissão de historiador, mas na periferia de tudo. Muitas vezes, como diz, vai para o seu escritório encontrar-se com alunos como se estivesse indo ao cinema. Diria, então, que procura se relacionar com o mundo como se fosse um espectador?
Ginzburg - O advogado do diabo que há em mim já me fez essa pergunta. Percebo as virtudes e potencialidades intelectuais de se olhar as coisas à distância, como um estranho. E, de certo modo, desde que passei a viver seis meses em Los Angeles e seis meses em Bolonha, dupliquei minhas possibilidades de ser um espectador. No entanto, ao lado de vantagens vejo também perigos nessa posição. E, estranhamente, devo dizer que consegui contrabalançar esses perigos pouco depois de dividir meu ano entre os Estados Unidos e a Itália, quando me envolvi no julgamento de meu amigo Adriano Sofri, condenado à prisão por um crime que não cometeu. Essa foi a primeira vez que me vi pessoalmente comprometido, enquanto historiador, com questões atuais, percebendo que o que escrevesse poderia fazer diferença, o que infelizmente não ocorreu. Mas, se reconheço que há perigo em se adotar a posição de um permanente espectador, por outro, sou cético também quanto a idéia de ser um historiador engajado. Penso que escolher tópicos só porque são os de "nossa época", porque dizem respeito ao "hoje", significa ter uma visão míope e provinciana da história; mesmo porque o que parece totalmente distante da atualidade pode se tornar, repentinamente, o seu foco.
Folha - John Elliot criticou "O Queijo e os Vermes" por ter encorajado a atomização do passado. Como responderia a essa crítica?
Ginzburg - Sou grato a Elliot por ter chamado atenção para meu trabalho e acredito que ele não era tanto contra o livro em si, mas contra a possibilidade de a abordagem que utilizei se transformar na única abordagem da história. Sei que desempenhei, ao lado de outros, o papel de abre-alas a um tipo de trabalho que busca trazer para o centro da história fenômenos até então considerados periféricos, como, por exemplo, a feitiçaria a partir da visão dos feiticeiros e o mundo visto por um moleiro. Mas, por outro lado, muito cedo percebi que aquilo não era o suficiente. Em outras palavras, tendo a batalha sido ganha, o problema era evitar os clichês. Daí não ter argumentado contra Elliot, pois, de certo modo, concordo com ele. A idéia de se opor a chamada micro-história à macro-história não faz sentido, assim como também é absurda a idéia de se opor história social à história política. Na verdade, há alguns anos alguém me perguntou qual era a área mais promissora da história. E eu respondi: a política, pois acredito que se deve escrever história política, se bem que de um novo modo.
Folha - Está querendo dizer que a chamada "história vista de baixo" foi longe demais?
Ginzburg - Sim, pois os arquivos estão cheios de histórias de pessoas desconhecidas. Então, a questão que se coloca, e que exige muita reflexão, é: por que esta história e não outra, por que este documento e não outro? Tenho muito medo de um movimento intelectual se transformar num slogan, pois há sempre o perigo de auto-complacência intelectual, ou seja, de se acreditar no caminho correto, verdadeiro. Não me agrada, em absoluto, a idéia de transformar a história vista de baixo num tipo de slogan, pois, se a idéia é substituir uma abordagem ortodoxa por outra, tudo se torna totalmente desinteressante. Essa é a razão pela qual tenho trabalhado sobre temas variados e a partir de pressupostos variados. Diria que minha própria expectativa consiste em desapontar todas as possíveis expectativas geradas pelos meus trabalhos; caso contrário, eu cairia num tipo de clichê e seria transformado num padre, papel que detesto. Não gosto de pregar, e especialmente para pessoas já convertidas. E nada está mais distante de mim do que idéia de ter uma audiência composta de jovens estudantes de esquerda apaixonados pela história vista de baixo e aguardando de mim uma mensagem nessa direção.
Folha - O senhor se refere ao seu gosto pelo "detalhe de contador de história" e é muito elogiado por seu estilo narrativo. Diria que seu talento para a "narração compulsiva" está relacionado ao romancista que queria ter sido? Qual é a relação entre os historiadores e romancistas?
Ginzburg - Penso que sim, mas, por outro lado, isso mostra como os constrangimentos não trabalham em uma só direção. Você pode se transformar tanto num ateu quanto num santo por ser filho de um padre. O fato de ser filho de Natalia Ginzburg poderia, pois, funcionar tanto como um impulso positivo quanto como um impulso para a resistência. Quanto à narrativa, devo dizer que a noção de narrativa em história tem se moldado nos romances do século 19, mas, se pensarmos em romances do século 20, como os de Proust ou Joyce, fica evidente que a distinção entre ficção e não-ficção se torna muito pouco clara. A esse respeito, uma idéia que muito me atrai é a da relação entre história e ficção como envolvendo competição e desafios mútuos. A história tem sido um desafio para romancistas como Balzac, por exemplo, que reagiu dizendo: "Serei o historiador do século 19!". E então, depois dele, temos Stendhal, Flaubert e outros, criando desafios para os historiadores. A relação entre história e ficção envolve, pois, aprendizado mútuo, com os gêneros se desafiando e respondendo um ao desafio do outro.
Folha - O senhor já sugeriu que não se deve esperar do estudo passado a solução para os nossos problemas. De que modo, no seu entender, o estudo do passado é relevante para nós?
Ginzburg - A história pode nos despertar para a percepção de culturas diferentes, para a idéia de que as pessoas podem ser diferentes e, com isso, contribuir para a ampliação das fronteiras de nossa imaginação. Disso decorreria uma atitude menos provinciana em relação ao passado e ao presente. Dito isso, devo lembrar, no entanto, que é praticamente impossível prever a reação das pessoas e que a "química intelectual" envolvida na recepção da leitura é extremamente complicada. Posso ilustrar isso com a reação à minha própria obra. "Os Andarilhos do Bem" ("I Benandanti", em italiano), por exemplo, se tornou parte da redescoberta da identidade regional de Friuli e soube que hoje há agora, lá, uma banda de rock chamada Benandanti Electronics! Folha - O senhor parece não apreciar muito o trabalho de Michel Foucault e já o criticou como populista. Poderia explicitar melhor suas reservas a ele?
Ginzburg - Devo dizer inicialmente que o considero muito mais interessante do que seus seguidores. O que é especialmente desinteressante nestes é que eles tomam as metáforas de Foucault como explicações, o que é um absurdo. E diria ainda mais: o próprio Foucault antes das metáforas é muito mais interessante. Fiquei surpreso com um volume publicado há uns dois anos com o resumo das aulas que ele deu no Collège de France. Pois elas revelam um Foucault muito melhor, sem todas aquelas metáforas, aquela ostentação. O que quero dizer é que havia vários Foucaults, e um deles era muito, muito brilhante, mas, no meu entender, pouco original. Sob esse ponto de vista, diria que Foucault é um autor extremamente superestimado, pois em grande parte ele nada mais é do que uma nota de rodapé a Nietzsche. O que, afinal, não é grave, se considerarmos que há tão poucos pensadores realmente originais. É inegável, no entanto, que ele descobriu novos tópicos, novas áreas do conhecimento e teve também algumas idéias interessantes, como, por exemplo, a idéia da microfísica do poder -outra metáfora-, que poderia, no entanto, se tornar problema de pesquisa, pois há muito a ser feito nessa direção; o que infelizmente nem Foucault e muito menos seus seguidores fizeram. Pessoalmente ele era extremamente agressivo -de fato, a pessoa mais agressiva que jamais encontrei- e egocêntrico de um modo maníaco, o que lhe permitia vender sua própria imagem com grande eficiência. Lembro-me de estar uma vez num café de Paris conversando com E. P. Thompson e começamos a falar sobre Foucault. Foi quando Thompson disse algo que pensei ter ouvido errado: "Foucault é um charlatão!". Pedi que repetisse, tal minha surpresa, e era isso mesmo. Concordo que certamente havia muito de charlatão em Foucault, mas não só. Muito de sua obra -a da retórica vazia- vai realmente desaparecer, mas há também coisas interessantes que merecem ser preservadas. Seria, pois, extremamente importante se alguém isento se empenhasse em estudar Foucault seriamente, começando com esses resumos de sua aulas. Muito lixo já foi escrito sobre ele, e todos os elogios exacerbados feitos por seus seguidores só contribuíram para depreciá-lo. Está na hora de alguém livrar Foucault dessa tola idolatria.
Maria Lúcia G. Pallares-Burke é professora de história da educação da USP, autora de "The Spectator, o Teatro das Luzes - Diálogo e Imprensa no Século 18" e "Nísia Floresta, o Carapuceiro e Outros Ensaios de Tradução Cultural" (ed. Hucitec).