sábado, 25 de outubro de 2008

CRISE ECONÔMICA E FUTURO

DEPRESSÃO, UMA VISÃO DE LONGO PRAZO

Estamos nos movendo em direção a um mundo protecionista. Estamos nos movendo para um papel muito maior do governo na produção. Mesmo os EUA e a Grã Bretanha estão nacionalizando parcialmente os bancos e as grandes empresas moribundas. Nos dirigimos a uma distribuição conduzida pelo governo, que pode assumir modos social-democratas à centro-esquerda ou formas autoritárias de extrema direita.
Immanuel Wallerstein - La Jornada
Data: 22/10/2008

A depressão já começou. Alguns jornalistas, um tanto constrangidos, seguem perguntando aos economistas se talvez não estejamos só entrando numa mera recessão. Não creia neles nem por um minuto. Já estamos no começo de uma depressão mundial de grande envergadura com desemprego maciço em quase todas as partes. Pode assumir a forma de uma deflação nominal clássica, com todas as suas conseqüências para as pessoas comuns. É um pouco menos provável que assuma a forma de uma inflação galopante, que é somente uma outra forma de derrubar valores, inclusive pior para as pessoas comuns.
É claro que todo mundo se pergunta o que disparou essa depressão. Serão os derivativos, que Warren Buffett chama de "armas financeiras de destruição em massa"? Ou são, por acaso, as hipotecas subprime? Ou os especuladores do petróleo? Julgar culpas não tem importância real. Isso é concentrar-se na poeira, como dizia Fernand Braudel, dos eventos de curta duração. Se quisermos entender o que está ocorrendo necessitamos lançar um olhar amplo para outras temporalidades, que são muito mais reveladoras. Um é o dos vai-e-vens cíclicos de média duração. O outro é aquele das tendências estruturais de longa duração.
A economia-mundo capitalista teve, durante vários séculos, pelo menos duas formas de vai-e-vens cíclicos. Uns são os chamados ciclos de Kondratieff, que historicamente teriam uma duração de 50-60 anos. E outros são os ciclos hegemônicos, que são muito mais longos.
Em termos de ciclos hegemônicos, os EUA foram um adversário dessa hegemonia nos idos de 1873; conseguiu sua hegemonia depois de 1945 e vem declinando desde os anos 70. As loucuras de George W. Bush transformaram esse declínio lento em precipitado. E agora já estamos longe de qualquer retomada da hegemonia estadunidense. Entramos, como acontece normalmente, num mundo multipolar. Os EUA permanecem como potência forte, talvez a mais forte, mas continuará declinando em relação a outras potências, nas próximas décadas. Não há muito o que alguém possa fazer para mudar isso.
Os ciclos de Kondratieff têm uma temporalidade diferente. O mundo saiu da última fase B do ciclo Kondratieff em 1945, e então o retorno mais forte à fase A vem ocorrendo, na história do sistema-mundo moderno. Chegou ao seu clímax por volta de 1967-1973, e começou o seu descenso. Esta fase B foi muito mais longa que as fases B anteriores e seguimos nela.
As características de uma fase B de Kondratieff são bem conhecidas e coincidem com o que a economia-mundo vem experimentado desde os anos 70. As taxas de lucro nas atividades produtivas baixam, especialmente naqueles tipos de produção que tenham sido mais rentáveis. Em conseqüência, os capitalistas que desejem níveis de lucro realmente altos se inclinam para o setor financeiro, e se envolvem no que basicamente é especulação. Para que as atividades produtivas não se tornem tão pouco rentáveis, têm de mudar-se das zonas centrais para outras partes do sistema-mundo, negociando custos menores de transação com mão-de-obra mais barata. É por isso que começam a desaparecer os empregos em Detroit, Essen e Nagoya, e a se expandirem nas fábricas da China, da Índia e do Brasil.
Quanto às bolhas especulativas, algumas pessoas sempre fazem muito dinheiro com elas. Só que cedo ou tarde as bolhas especulativas sempre arrebentam. Se se pergunta por que essa fase B do ciclo Kondratieff durou tanto, é porque os poderes existentes - o Departamento do Tesouro e o Federal Reserve (Banco Central) norte-americanos, o FMI e seus colaboradores na Europa ocidental e Japão - intervieram regularmente no mercado e de maneira importante para ajudar a economia-mundo - em 1987, quando a bolsa despencou; em 1989, no colapso do crédito e das poupanças nos EUA; em 1997, com a queda das bolsas na Ásia oriental; em 1998, pelas mãos dos chamados Long Term Capital Management, um fundo Hedge de capitais de longo prazo; em 2001-2002, com Enron.
Com base no que aprenderam com as lições das fases B anteriores de Kondratieff, os poderes existentes pensaram que podiam vencer o sistema. Mas há limites intrínsecos para fazer isto. E agora chegamos neles, como Henry Paulson e Ben Bernanke o estão aprendendo para sua vergonha e talvez assombro. Desta vez não será tão fácil, provavelmente será impossível, evitar o pior.
No passado, uma vez que a depressão dava rédea solta a seus estragos, a economia-mundo se levantava com base nas inovações que podiam ser quase monopolizadas por um tempo. Assim, quando se diz que o mercado financeiro voltará a levantar-se, é isso o que se pensa que ocorrerá, agora como no passado, depois de as populações do mundo sentirem todo o estrago causado. E talvez em alguns poucos anos assim seja.
Há, contudo, algo novo que pode interferir nesse belo padrão cíclico que tem sustentado o sistema capitalista por uns 500 anos. As tendências estruturais podem interferir nas tendências cíclicas. Os traços estruturais básicos do capitalismo como sistema-mundo operam mediante certas regras que podem ser traçadas num gráfico como um equilíbrio em movimento ascendente. O problema, como acontece com todos os equilíbrios estruturais de todos os sistemas, é que com o tempo as curvas se movem para muito além do equilíbrio e se torna impossível regressar ao ponto anterior.
O que se fez para que o sistema tenha se tornado tão distante do equilíbrio? Grosso modo, o que ocorre é que, ao longo de 500 anos, os três custos básicos da produção capitalista - pessoal, insumos e impostos - têm subido constantemente no percentual dos preços possíveis de venda, de tal modo que hoje se tornou impossível obter grandes lucros da produção quase monopolizada que sempre foi a base da acumulação capitalista significativa. Não é porque o capitalismo esteja falhando no que faz melhor. É precisamente porque o está fazendo tão bem que finalmente minou a base para acumulações futuras.
Quando chegamos a esse ponto o sistema se bifurca (na linguagem dos estudos de alta complexidade). As conseqüências imediatas são uma turbulência altamente caótica, que nosso sistema-mundo está experimentando neste momento e que seguirá experimentando por uns 20-50 anos. Como todos apostam na direção que pensam ser a mais imediatamente adequada para sua perspectiva, emergirá uma ordem de caos numa das veredas dos muitos caminhos alternativos diferentes.
Podemos assegurar com confiança que o presente sistema não sobreviverá. O que não podemos predizer é qual nova ordem será escolhida para substituí-lo, porque esta será o resultado de uma infinidade de pressões individuais. Mas cedo ou tarde um novo sistema se instalará. Não será um sistema capitalista, mas pode ser algo muito pior (ainda mais polarizado e hierárquico) ou algo muito melhor (relativamente democrático e relativamente igualitário) que o atual sistema. Decidir um novo sistema é a luta política mundial mais importante de nossos tempos.
E, quanto às perspectivas imediatas de curta duração, ad interim, é claro o que ocorre em todas as partes. Estamos nos movendo em direção a um mundo protecionista (esqueça-se da chamada globalização). Estamos nos movendo para um papel muito maior do governo na produção. Mesmo os EUA e a Grã Bretanha estão nacionalizando parcialmente os bancos e as grandes empresas moribundas. Nos dirigimos a uma distribuição populista conduzida pelo governo, que pode assumir modos social-democratas à centro-esquerda ou formas autoritárias de extrema direita. E nos movemos em direção a conflitos sociais agudos no interior de alguns estados, à medida que todo o mundo passa a competir por uma fatia menor do bolo. No curto prazo, não é, de modo algum, um panorama agradável.

Immanuel Wallerstein, sociólogo norte-americano, um dos teóricos da Teoria do Sistema Mundial (de onde vem a expressão Sistema-Mundo) e pesquisador sênior da Universidade Yale. É autor de Sistema Mundial Moderno, de 1974.

Tradução: Katarina Peixoto - Carta Maior

sábado, 11 de outubro de 2008

HISTÓRIA DA CULTURA E HISTÓRIA SOCIAL

HISTÓRIA CULTURAL E HISTÓRIA SOCIAL

Silvia Hunold Lara

No Brasil, a história cultural tornou-se, há algum tempo, prática corrente entre os historiadores. Quase todos os programas de pós-graduação possuem alguma linha de pesquisa com a palavra cultura em seu título e vêm produzindo teses nesta área em quantidades crescentes. O problema é que, neste "boom" historiográfico, vozes simultâneas falam de cultura querendo dizer coisas bem diferentes, referindo-se a pesquisas de natureza bastante diversa. Por isso mesmo, as discussões sobre os sentidos e limites deste campo de reflexão histórica são, não somente bem-vindos, mas necessários.

Abordando o tema com habilidade e experiência, Peter Burke contrapõe a "história cultural clássica" à "nova história cultural", destacando quatro pontos críticos: a natureza dos vínculos entre cultura e sociedade; a existência de unidade ou diversidade culturais; a variação nos conceitos de cultura; e os problemas de uma noção de cultura estreita demais (equivalente às belas-artes). Diante deles, propõe uma história cultural que esteja atenta para "o encontro cultural, a circularidade e o processo de cotidianização".
Um rápido exame da produção mais recente da história cultural - no Brasil e no exterior - logo revela a grande variedade de significados atribuídos à palavra "cultura". Não se trata, porém, apenas de uma questão de terminologia, mas de modos diversos de conceber a atividade histórica, de formular problemas e abordar a documentação - ligados a tradições historiográficas distintas. Assim, a concepção de que há um universo mental comum entre "César e o último soldado de suas legiões", como afirmou Le Goff (1976), já pressupõe um tipo de vínculo entre sociedade e cultura, uma indagação sobre o que transcende as diferenças, e leva a um determinado tratamento das fontes. Contrapondo-se a esta concepção e criticando "a insistência nos elementos inertes, obscuros [e] inconscientes" da história das mentalidades, Ginzburg defendeu que "uma análise de classes" (centrada, portanto, nas diferenças e conflitos) era "sempre melhor que uma interclassista" (Ginzburg, 1987, p. 32)
A oposição, entretanto, não é tão simples. Enfatizando a diferença e o estranhamento, Darnton (1986) procurou decodificar um "universo mental estranho". Não tentava fazer emergir uma "cultura camponesa latente" em documentos produzidos pela Inquisição, como no caso dos primeiros trabalhos de Ginzburg, mas ter acesso a significados culturais existentes, por exemplo, em um massacre de gatos praticado por alguns artesãos no século XVIII. Pressupondo haver um idioma cultural comum - caso contrário, os patrões não se sentiriam atingidos pela "brincadeira" feita por seus empregados - procurou ver também variações. Trabalhou com diferentes interpretações patronais (do dono da gráfica ou de sua mulher) e várias possibilidades de entendimento do ritual do massacre, conforme procurasse situá-lo em tradições corporativas, festivas etc. Aqui, ao invés de dicotomias culturais e relações de circularidade e troca entre universos distintos, há diversos conflitos simultâneos e entrecruzados que se expressam através daquele (para nós) estranho massacre de gatos.
A existência ou não de consensos culturais, a multiplicidade e as relações entre significações diversas e em conflito: estes são aspectos que mantêm vínculos diretos com os debates mais amplos da história social, repondo, em novos termos, questões clássicas nesta área. Uma boa maneira de retomar alguns dos temas propostos por Peter Burke é verificar seus imbricamentos e mostrar como, do ponto de vista das implicações e problemas envolvidos pelo conhecimento histórico, não há separação entre história social e história cultural.
Creio ser esta uma questão central para os que se dedicam ao estudo da história cultural. Como tratar, ao mesmo tempo, da unidade e da diversidade culturais? Dicotomias ou polaridades que opõem a elite ao popular, o urbano ao rural, letrados e iletrados, apesar de muito criticadas, ainda continuam a ser freqüentemente utilizadas. As categorias tradicionalmente utilizadas pela história social também não parecem ser muito adequadas à análise cultural. De um lado, pode-se concordar com Hobsbawm (1987) sobre comportamentos e valores que distinguem a "cultura operária" na Inglaterra de meados do século XIX e pensar, portanto, em culturas "de classe", capazes de separar e diferenciar as classes entre si. Por outro, não se pode esquecer as considerações de Gutman (1976) sobre as dissensões internas à "classe operária" norte-americana, em função da das experiências anteriores e da diversidade étnica.
Hobsbawm estava mais interessado nas questões da consciência de classe; Gutman, por sua vez, procurou examinar as tensões entre diversos grupos de homens e mulheres recém-chegados à América e à vida das fábricas. Ênfases diferentes, questões e pesquisas diversas. O problema de Gutman não está mais nas relações entre "cultura" e "sociedade", mas sim na apreensão da diversidade e da unidade cultural no interior dos vários grupos sociais.
Do ponto de vista das relações entre um grupo e a sociedade, creio que um artigo de Thompson (1974) é bastante sugestivo. Trabalhando com a oposição entre gentry e plebe, mais que reconstruir o "universo mental dos trabalhadores ingleses", ele mostrou como, partilhando valores comuns, os trabalhadores pobres foram se sentindo e sendo diferenciados da e pela gentry; numa época de aparente consenso, o conflito entre os dois grupos fez parte da própria diferenciação social entre os dois pólos e criou canais específicos de compreensão e expressão destas tensões.
Evidentemente, como diriam Thompson, Hill e tantos outros, homens e mulheres experimentam identidades e diferenças ao longo de suas vidas. Compartilham interesses ou lutam contra inimigos comuns, pensam sobre isso e consideram suas estratégias a partir de certos valores, herdados ou construídos. A experiência - uma das noções mais caras a Thompson - não pertence à história social ou à história cultural, mas interliga necessariamente as duas abordagens. Neste sentido, há "sensibilidades" ou "mentalidades" diversas - mas é preciso não esquecer que ao teatro da gentry se opõe o contra-teatro da plebe: mais que um idioma, talvez o que tenhamos aqui seja uma gramática cultural comum. Para além da questão da terminologia há a idéia de que pessoas diferentes podem atribuir significados diversos a práticas culturais comuns, ou expressar sentidos contrários no interior de uma mesma "linguagem" cultural.
A idéia de um idioma cultural comum parece ser mais adequada a situações de aparente consenso social, mas também pode ser explorada em circunstâncias históricas em que as dificuldades de comunicação parecem ter sido enormes - como no caso de culturas radicalmente diferentes que entram em contato pela primeira vez. A análise de situações de choque cultural, em que pessoas de mundos estranhos passam a estar em contato, são importantes para o estudo das aproximações e afastamentos entre grupos sociais antagônicos e desiguais no interior de uma mesma sociedade. Noções como sincretismo, por exemplo, tornam-se extremamente precárias nestes contextos. Creio que um dos grandes problemas que atravessam a história cultural e social hoje em dia seja justamente o de lidar com estas relações contraditórias de consenso e dissenso, unidade e diversidade, união e conflito entre grupos sociais e no interior dos grupos de uma sociedade.
Pelo menos é o que mais tem me interessado, e o que estou tentando abordar através de minha própria pesquisa. Até pouco tempo atrás, estudei a escravidão no Brasil da segunda metade do século XVIII seguindo questões formuladas no interior da história social "clássica". Estava preocupada com "os escravos", com sua visão da escravidão, com suas possibilidades de alterar suas condições de vida e trabalho. Diferenças de gênero e origem, por exemplo, não fizeram parte de minhas preocupações. Quando muito estavam presentes em tabelas que apresentavam porcentagens de homens e mulheres, casados e solteiros, crioulos e africanos etc. Hoje, tenho procurado verificar como estas diferenças aparecem na vida de escravas, forras e livres que andavam pelas ruas de Salvador e Rio de Janeiro, no mesmo período.
Como as diferenças entre aquelas mulheres (brancas, pardas e negras; crioulas ou africanas; livres, forras e escravas) eram percebidas por elas mesmas e pelos outros (homens e mulheres, na sua diversidade social e cultural) que com elas se relacionavam? Não se trata de um estudo centralizado nas questões de gênero: o objeto principal estudado são os trajes femininos. A escolha é meramente estratégica, pois permite discutir como gênero, raça e etnia se cruzam nos dois mais importantes núcleos urbanos da colônia portuguesa na América. Faço isso trabalhando com os diversos significados atribuídos às roupas das várias mulheres que circulavam, em diferentes ocasiões, pelas duas cidades. De certo modo, a questão dos idiomas culturais se coloca aqui, num contexto bastante interessante: em Salvador e Rio de Janeiro do final do século XVIII havia pessoas culturalmente diferentes (vindas de Portugal, de outras nações européias ou da África) e socialmente desiguais (escravos e seus senhores, forros, artesãos, etc). É instigante verificar como, apesar da grande presença da escravidão dos africanos e de seus descendentes, as categorias culturais e sociais não podem ser mecanicamente associadas uma à outra: os senhores, por exemplo, não eram todos brancos, livres e europeus; nem os africanos eram todos escravos etc.
Por isso, afirmo que não podemos mais trabalhar com conceitos tão polarizados, com oposições simplistas que separam radicalmente economia e cultura, cultura e sociedade, e assim por diante. Como dizia Hobsbawm em um artigo sobre a história social, o historiador das idéias talvez possa não prestar muita atenção aos aspectos econômicos e o historiador econômico talvez não precise pensar em Shakespeare, mas o historiador social que não levar em conta os dois não vai muito longe (1971, p.25). Passados mais de 20 anos, diria que a balança pendeu cada vez mais para a cultura. Os trabalhos recentes da história social vêm demonstrando que não só "novos" aspectos da experiência humana devem ser levados em conta, mas que eles só podem ser explicados ou interpretados se atentarmos para as complexas relações culturais que os informam.
Isso diz respeito também aos debates teóricos mais amplos que atravessam a história social. Talvez o mais importante, a meu ver, seja aquele emblematicamente travado entre Chartier e Darnton: até que ponto podemos ultrapassar a "textualidade" dos documentos para alcançar as práticas sociais? É possível chegarmos a conhecer a história, os valores e as ações, a cultura de pessoas que nada deixaram registrado? Restritos a interpretar a interpretação de terceiros, ficaremos irremediavelmente circunscritos ao terreno das representações?
Estaremos presos às tramas dos relatos de Nicolas Contat que em 1762 narrou suas experiências numa oficina gráfica em Paris no final da década de 1730, ou de Jean de Corras, o juiz que presidiu o processo contra o falso Martin Guerre em 1560, para citar um outro exemplo (Davis, 1987), - ou podemos, através destes relatos, chegar a conhecer as esperanças e sentimentos dos camponeses do sul da França no século XVI ou os motivos que levaram os trabalhadores de uma certa gráfica em Paris a massacrarem gatos e não cães em 1730?
A tensão entre práticas e representações atravessa a "nova história social" tanto quanto a "nova história cultural" e constitui-se num dos eixos centrais do debate a respeito dos limites do conhecimento histórico nestas duas áreas. Do meu ponto de vista, os historiadores contemporâneos sempre têm em mente que os documentos possuem apresentam "filtros" e "opacidades" - temos que decidir se permanecemos amarrados a estes obstáculos ou se podemos usá-los para conhecer as ações humanas no passado: entre práticas e representações, quais os limites do conhecimento que pretendemos produzir? As críticas feitas por Chartier ao trabalho de Darnton não são irrelevantes e precisamos aprimorar nossos conhecimentos sobre as fontes que utilizamos. Afinal, como diz Ginzburg (1990) a respeito dos processos inquisitoriais, podemos até mesmo utilizar as analogias e "traduções" feitas pelos inquisidores como instrumentos para nos aproximarmos das crenças dos camponeses do início da época moderna... Conhecer os parâmetros no interior dos quais as fontes que utilizamos foram produzidas é condição primordial do trabalho do historiador. História cultural e história social entrelaçam-se, aqui, inevitavelmente.
No entanto, talvez a principal questão que tenhamos que enfrentar seja a da necessidade de retomar a lição deixada pela primeira geração dos Annales: precisamos de bons problemas para fazermos uma boa história. Hoje eles não mais podem ser formulados sem levar em conta as dimensões culturais e sociais e vice-versa. A dissociação entre as duas, a predominância de uma sobre a outra nos leva às questões apontadas por Burke. A associação entre elas nos permite fugir ao mesmo tempo da fragmentação, da despolitização e do diletantismo que tantas vezes ainda vemos presente na história cultural.
Referências Bibliográficas
Chartier, Roger. Text, symbols, and frenchness. The Journal of Modern History, 57 (4): 682-695, 1985.
Darnton, Robert. História e antropologia In: O beijo de Lamourette. São Paulo: Cia. das Letras, 1990. p. 284-303.
_____. Os trabalhadores se revoltam: o grande massacre de gatos na Rua Saint-Severin In: _____. O grande massacre de gatos. Rio de Janeiro: Graal, 1986, p. 103-139.
Davis, Natalie Zemon. O Retorno de Martin Guerre. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
Ginzburg, Carlo. O Inquisidor como antropólogo. Revista Brasileira de História, 21: 9-20, 1991.
_____. O Queijo e os vermes. São Paulo: Cia. das Letras, 1987. p. 32
Gutman, Herbert. Work, culture, and society in industrializing America, 1815-1919. In: _____. Work, culture, and society. New York: Vintage, 1976, p. 9-78.
HOBSBAWM, Eric. J. A formação da cultura da classe operária britânica In: _____. Mundos do trabalho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 251-272.
_____.From social history to the history of society. Daedalus, 100, 1971
Le Goff, Jacques. As mentalidades: uma história ambígua In: _____ & Nora, P. História: novos objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976. p. 68-83.
Thompson, Edward P. Patrician society, plebeian culture. Journal of Social History, 7 (4): 1974.

sábado, 4 de outubro de 2008

ENTREVISTA: ERIC HOBSBAWM

A crise do capitalismo e a importância atual de Marx

Em entrevista a Marcello Musto, o historiador Eric Hobsbawm analisa a atualidade da obra de Marx e o renovado interesse que vem despertando nos últimos anos, mais ainda agora após a nova crise de Wall Street. E fala sobre a necessidade de voltar a ler o pensador alemão: “Marx não regressará como uma inspiração política para a esquerda até que se compreenda que seus escritos não devem ser tratados como programas políticos, mas sim como um caminho para entender a natureza do desenvolvimento capitalista”.
Marcello Musto - Sin Permiso

Eric Hobsbawm é considerado um dos maiores historiadores vivos. É presidente do Birbeck College (London University) e professor emérito da New School for Social Research (Nova Iorque). Entre suas muitas obras, encontra-se a trilogia acerca do “longo século XIX”: “A Era da Revolução: Europa 1789-1848” (1962); “A Era do Capital: 1848-1874” (1975); “A Era do Império: 1875-1914 (1987) e o livro “A Era dos Extremos: o breve século XX, 1914-1991 (1994), todos traduzidos em vários idiomas. Entrevistamos o historiador por ocasião da publicação do livro “Karl Marx’s Grundrisse. Foundations of the Critique of Political Economy 150 Years Later” (Os Manuscritos de Karl Marx. Elementos fundamentais para a Crítica da Economia Política, 150 anos depois). Nesta conversa, abordamos o renovado interesse que os escritos de Marx vêm despertando nos últimos anos e mais ainda agora após a nova crise de Wall Street. Nosso colaborador Marcello Musto entrevistou Hobsbawm para Sin Permiso.
Marcello Musto: Professor Hobsbawm, duas décadas depois de 1989, quando foi apressadamente relegado ao esquecimento, Karl Marx regressou ao centro das atenções. Livre do papel de intrumentum regni que lhe foi atribuído na União Soviética e das ataduras do “marxismo-leninismo”, não só tem recebido atenção intelectual pela nova publicação de sua obra, como também tem sido objeto de crescente interesse. Em 2003, a revista francesa Nouvel Observateur dedicou um número especial a Marx, com um título provocador: “O pensador do terceiro milênio?”. Um ano depois, na Alemanha, em uma pesquisa organizada pela companhia de televisão ZDF para estabelecer quem eram os alemães mais importantes de todos os tempos, mais de 500 mil espectadores votaram em Karl Marx, que obteve o terceiro lugar na classificação geral e o primeiro na categoria de “relevância atual”. Em 2005, o semanário alemão Der Spiegel publicou uma matéria especial que tinha como título “Ein Gespenst Kehrt zurük” (A volta de um espectro), enquanto os ouvintes do programa “In Our Time” da rádio 4, da BBC, votavam em Marx como o maior filósofo de todos os tempos. Em uma conversa com Jacques Attali, recentemente publicada, você disse que, paradoxalmente, “são os capitalistas, mais que outros, que estão redescobrindo Marx” e falou também de seu assombro ao ouvir da boca do homem de negócios e político liberal, George Soros, a seguinte frase: “Ando lendo Marx e há muitas coisas interessantes no que ele diz”. Ainda que seja débil e mesmo vago, quais são as razões para esse renascimento de Marx? É possível que sua obra seja considerada como de interesse só de especialistas e intelectuais, para ser apresentada em cursos universitários como um grande clássico do pensamento moderno que não deveria ser esquecido? Ou poderá surgir no futuro uma nova “demanda de Marx”, do ponto de vista político?
Eric Hobsbawm: Há um indiscutível renascimento do interesse público por Marx no mundo capitalista, com exceção, provavelmente, dos novos membros da União Européia, do leste europeu. Este renascimento foi provavelmente acelerado pelo fato de que o 150° aniversário da publicação do Manifesto Comunista coincidiu com uma crise econômica internacional particularmente dramática em um período de uma ultra-rápida globalização do livre-mercado. Marx previu a natureza da economia mundial no início do século XXI, com base na análise da “sociedade burguesa”, cento e cinqüenta anos antes. Não é surpreendente que os capitalistas inteligentes, especialmente no setor financeiro globalizado, fiquem impressionados com Marx, já que eles são necessariamente mais conscientes que outros sobre a natureza e as instabilidades da economia capitalista na qual eles operam. A maioria da esquerda intelectual já não sabe o que fazer com Marx. Ela foi desmoralizada pelo colapso do projeto social-democrata na maioria dos estados do Atlântico Norte, nos anos 1980, e pela conversão massiva dos governos nacionais à ideologia do livre mercado, assim como pelo colapso dos sistemas políticos e econômicos que afirmavam ser inspirados por Marx e Lênin. Os assim chamados “novos movimentos sociais”, como o feminismo, tampouco tiveram uma conexão lógica com o anti-capitalismpo (ainda que, individualmente, muitos de seus membros possam estar alinhados com ele) ou questionaram a crença no progresso sem fim do controle humano sobre a natureza que tanto o capitalismo como o socialismo tradicional compartilharam. Ao mesmo tempo, o “proletariado”, dividido e diminuído, deixou de ser crível como agente histórico da transformação social preconizada por Marx. Devemos levar em conta também que, desde 1968, os mais proeminentes movimentos radicais preferiram a ação direta não necessariamente baseada em muitas leituras e análises teóricas. Claro, isso não significa que Marx tenha deixado de ser considerado como um grande clássico e pensador, ainda que, por razões políticas, especialmente em países como França e Itália, que já tiveram poderosos Partidos Comunistas, tenha havido uma apaixonada ofensiva intelectual contra Marx e as análises marxistas, que provavelmente atingiu seu ápice nos anos oitenta e noventa. Há sinais agora de que a água retomará seu nível.
Marcello Musto: Ao longo de sua vida, Marx foi um agudo e incansável investigador, que percebeu e analisou melhor do que ninguém em seu tempo o desenvolvimento do capitalismo em escala mundial. Ele entendeu que o nascimento de uma economia internacional globalizada era inerente ao modo capitalista de produção e previu que este processo geraria não somente o crescimento e prosperidade alardeados por políticos e teóricos liberais, mas também violentos conflitos, crises econômicas e injustiça social generalizada. Na última década, vimos a crise financeira do leste asiático, que começou no verão de 1997; a crise econômica Argentina de 1999-2002 e, sobretudo, a crise dos empréstimos hipotecários que começou nos Estados Unidos em 2006 e agora tornou-se a maior crise financeira do pós-guerra. É correto dizer, então, que o retorno do interesse pela obra de Marx está baseado na crise da sociedade capitalista e na capacidade dele ajudar a explicar as profundas contradições do mundo atual?
Eric Hobsbawm: Se a política da esquerda no futuro será inspirada uma vez mais nas análises de Marx, como ocorreu com os velhos movimentos socialistas e comunistas, isso dependerá do que vai acontecer no mundo capitalista. Isso se aplica não somente a Marx, mas à esquerda considerada como um projeto e uma ideologia política coerente. Posto que, como você diz corretamente, a recuperação do interesse por Marx está consideravelmente – eu diria, principalmente – baseado na atual crise da sociedade capitalista, a perspectiva é mais promissora do que foi nos anos noventa. A atual crise financeira mundial, que pode transformar-se em uma grande depressão econômica nos EUA, dramatiza o fracasso da teologia do livre mercado global descontrolado e obriga, inclusive o governo norte-americano, a escolher ações públicas esquecidas desde os anos trinta. As pressões políticas já estão debilitando o compromisso dos governos neoliberais em torno de uma globalização descontrolada, ilimitada e desregulada. Em alguns casos, como a China, as vastas desigualdades e injustiças causadas por uma transição geral a uma economia de livre mercado, já coloca problemas importantes para a estabilidade social e mesmo dúvidas nos altos escalões de governo. É claro que qualquer “retorno a Marx” será essencialmente um retorno à análise de Marx sobre o capitalismo e seu lugar na evolução histórica da humanidade – incluindo, sobretudo, suas análises sobre a instabilidade central do desenvolvimento capitalista que procede por meio de crises econômicas auto-geradas com dimensões políticas e sociais. Nenhum marxista poderia acreditar que, como argumentaram os ideólogos neoliberais em 1989, o capitalismo liberal havia triunfado para sempre, que a história tinha chegado ao fim ou que qualquer sistema de relações humanas possa ser definitivo para todo o sempre.
Marcello Musto: Você não acha que, se as forças políticas e intelectuais da esquerda internacional, que se questionam sobre o que poderia ser o socialismo do século XXI, renunciarem às idéias de Marx, estarão perdendo um guia fundamental para o exame e a transformação da realidade atual?
Eric Hobsbawm: Nenhum socialista pode renunciar às idéias de Marx, na medida que sua crença em que o capitalismo deve ser sucedido por outra forma de sociedade está baseada, não na esperança ou na vontade, mas sim em uma análise séria do desenvolvimento histórico, particularmente da era capitalista. Sua previsão de que o capitalismo seria substituído por um sistema administrado ou planejado socialmente parece razoável, ainda que certamente ele tenha subestimado os elementos de mercado que sobreviveriam em algum sistema pós-capitalista. Considerando que Marx, deliberadamente, absteve-se de especular acerca do futuro, não pode ser responsabilizado pelas formas específicas em que as economias “socialistas” foram organizadas sob o chamado “socialismo realmente existente”. Quanto aos objetivos do socialismo, Marx não foi o único pensador que queria uma sociedade sem exploração e alienação, em que os seres humanos pudessem realizar plenamente suas potencialidades, mas foi o que expressou essa idéia com maior força e suas palavras mantêm seu poder de inspiração. No entanto, Marx não regressará como uma inspiração política para a esquerda até que se compreenda que seus escritos não devem ser tratados como programas políticos, autoritariamente ou de outra maneira, nem como descrições de uma situação real do mundo capitalista de hoje, mas sim como um caminho para entender a natureza do desenvolvimento capitalista. Tampouco podemos ou devemos esquecer que ele não conseguiu realizar uma apresentação bem planejada, coerente e completa de suas idéias, apesar das tentativas de Engels e outros de construir, a partir dos manuscritos de Marx, um volume II e III de “O Capital”. Como mostram os “Grundrisse”, aliás. Inclusive, um Capital completo teria conformado apenas uma parte do próprio plano original de Marx, talvez excessivamente ambicioso. Por outro lado, Marx não regressará à esquerda até que a tendência atual entre os ativistas radicais de converter o anti-capitalismo em anti-globalização seja abandonada. A globalização existe e, salvo um colapso da sociedade humana, é irreversível. Marx reconheceu isso como um fato e, como um internacionalista, deu as boas vindas, teoricamente. O que ele criticou e o que nós devemos criticar é o tipo de globalização produzida pelo capitalismo.
Marcello Musto: Um dos escritos de Marx que suscitaram o maior interesse entre os novos leitores e comentadores são os “Grundrisse”. Escritos entre 1857 e 1858, os “Grundrisse” são o primeiro rascunho da crítica da economia política de Marx e, portanto, também o trabalho inicial preparatório do Capital, contendo numerosas reflexões sobre temas que Marx não desenvolveu em nenhuma outra parte de sua criação inacabada. Por que, em sua opinião, estes manuscritos da obra de Marx, continuam provocando mais debate que qualquer outro texto, apesar do fato dele tê-los escrito somente para resumir os fundamentos de sua crítica da economia política? Qual é a razão de seu persistente interesse?
Eric Hobsbawm: Desde o meu ponto de vista, os "Grundrisse" provocaram um impacto internacional tão grande na cena marxista intelectual por duas razões relacionadas. Eles permaneceram virtualmente não publicados antes dos anos cinqüenta e, como você diz, contendo uma massa de reflexões sobre assuntos que Marx não desenvolveu em nenhuma outra parte. Não fizeram parte do largamente dogmatizado corpus do marxismo ortodoxo no mundo do socialismo soviético. Mas não podiam simplesmente ser descartados. Puderam, portanto, ser usados por marxistas que queriam criticar ortodoxamente ou ampliar o alcance da análise marxista mediante o apelo a um texto que não podia ser acusado de herético ou anti-marxista. Assim, as edições dos anos setenta e oitenta, antes da queda do Muro de Berlim, seguiram provocando debate, fundamentalmente porque nestes escritos Marx coloca problemas importantes que não foram considerados no “Capital”, como por exemplo as questões assinaladas em meu prefácio ao volume de ensaios que você organizou (Karl Marx's Grundrisse. Foundations of the Critique of Political Economy 150 Years Later, editado por M. Musto, Londres-Nueva York, Routledge, 2008).
Marcello Musto: No prefácio deste livro, escrito por vários especialistas internacionais para comemorar o 150° aniversário de sua composição, você escreveu: “Talvez este seja o momento correto para retornar ao estudo dos “Grundrisse”, menos constrangidos pelas considerações temporais das políticas de esquerda entre a denúncia de Stalin, feita por Nikita Khruschev, e a queda de Mikhail Gorbachev”. Além disso, para destacar o enorme valor deste texto, você diz que os “Grundrisse” “trazem análise e compreensão, por exemplo, da tecnologia, o que leva o tratamento de Marx do capitalismo para além do século XIX, para a era de uma sociedade onde a produção não requer já mão-de-obra massiva, para a era da automatização, do potencial de tempo livre e das transformações do fenômeno da alienação sob tais circunstâncias. Este é o único texto que vai, de alguma maneira, mais além dos próprios indícios do futuro comunista apontados por Marx na “Ideologia Alemã”. Em poucas palavras, esse texto tem sido descrito corretamente como o pensamento de Marx em toda sua riqueza. Assim, qual poderia ser o resultado da releitura dos “Grundrisse” hoje?
Eric Hobsbawm: Não há, provavelmente, mais do que um punhado de editores e tradutores que tenham tido um pleno conhecimento desta grande e notoriamente difícil massa de textos. Mas uma releitura ou leitura deles hoje pode ajudar-nos a repensar Marx: a distinguir o geral na análise do capitalismo de Marx daquilo que foi específico da situação da sociedade burguesa na metade do século XIX. Não podemos prever que conclusões podem surgir desta análise. Provavelmente, somente podemos dizer que certamente não levarão a acordos unânimes.
Marcello Musto: Para terminar, uma pergunta final. Por que é importante ler Marx hoje?
Eric Hobsbawm: Para qualquer interessado nas idéias, seja um estudante universitário ou não, é patentemente claro que Marx é e permanecerá sendo uma das grandes mentes filosóficas, um dos grandes analistas econômicos do século XIX e, em sua máxima expressão, um mestre de uma prosa apaixonada. Também é importante ler Marx porque o mundo no qual vivemos hoje não pode ser entendido sem levar em conta a influência que os escritos deste homem tiveram sobre o século XX. E, finalmente, deveria ser lido porque, como ele mesmo escreveu, o mundo não pode ser transformado de maneira efetiva se não for entendido. Marx permanece sendo um soberbo pensador para a compreensão do mundo e dos problemas que devemos enfrentar.
Tradução para Sin Permiso (inglês-espanhol): Gabriel Vargas Lozano
Tradução para Carta Maior (espanhol-português): Marco Aurélio Weissheimer